sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O Consumidor Está Muito Desprotegido

Por João Ventura


N. E.: Por pedido do autor, este conto obedece à antiga ortografia.

Quando despertou, estava sem orelhas. Ficou furioso. Acordou a mulher, que dormia a seu lado, e queixou-se:
— Tu já viste isto? Estes tipos da "Limpeza Enquanto Dorme, SARL" são uns aldrabões! O que é que dizia o prospecto? Levamos as peças depois de adormecer e trazemo-las de volta antes de acordar. Tretas! E agora sem orelhas, como é que eu vou trabalhar?
A mulher tentou deitar água na fervura.
— Olha, era pior se fosse o nariz. As orelhas ainda se disfarçam, está frio, pões o gorro de lã e um cachecol.
Mas ele continuava furioso.
— E já é a segunda que fazem! Lembras-te quando faltou um dedo? E logo o do anel! E só o trouxeram dois dias depois, e com a unha por limpar! Na volta do trabalho passo pela agência e peço o Livro de Reclamações. Vão ter a Defesa do Consumidor à perna!
A mulher encolheu os ombros. Até achava que ele ficava mais bonito sem orelhas mas, com ele tão zangado, não se atreveu a dizer nada.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Uma Notícia Geométrica

Por João Ventura


N.A.: Modesta homenagem a Edwin Abbott, autor de Flatland.
N. E.: Por pedido do autor, este conto obedece à antiga ortografia.

Era um quadrado perfeito (os seus lados mediam cada um 7 centímetros, com um erro inferior a 1 micrómetro). E, sendo extremamente vaidoso, estava sempre a gabar-se. O que irritava muitas outras figuras geométricas.
Um dia, à saída do livro de geometria, um gang de triângulos escalenos apanhou-o e deu-lhe um ensaio de pancada. Ficou com um lado partido e um vértice muito maltratado.
Levado ao hospital geométrico, teve azar com o médico que o atendeu na urgência, um octógono que era especialista em áreas e não em segmentos de recta, e que ao reparar o seu lado partido deixou os dois fragmentos desalinhados.
E foi assim que o quadrado perfeito passou a ser um pentágono. E ainda por cima irregular!

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Quem Quer Ser Super-Herói?

por Jorge Candeias


— Mas o que me irrita mesmo, pá — disse-me ele enquanto ia arrancando, mastigando e engolindo uma página após outra do livro de Kafka que eu lhe oferecera — é que podia perfeitamente ter sido picado por um bicho radioativo com alguma pinta. Com estilo, percebes? Uma aranha, um escorpião, uma vespa… pá, até um gafanhoto era melhor que a porcaria do peixinho de prata que me picou. — E mais uma página desapareceu perante os meus olhos horrorizados, e mais outra logo a seguir. Tentei consolar-me dizendo a mim próprio que o livro era curtinho e fora uma pechincha, uma edição de bolso não muito antiga comprada ali perto na liquidação de uma livraria que não resistira ao governo da troica e à internet. Sem grande sucesso.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Terra Brasilis

por Gerson Lodi-Ribeiro


Mammuthus primigenius — o paleontólogo sentencia na praça-d’armas às escuras.
— Em português alto e claro, Professor — o vulto do comandante da nossa Força-Tarefa grunhe, jovial, da primeira fila de cadeiras alinhadas em frente ao telão. — Por favor.
— Mamutes, Excelência — o cientista civil esclarece, fleugmático.
Cá entre nós, se alguém há dois anos me dissesse que eu e meus homens iríamos efetuar um desembarque anfíbio no delta do Mississipi, antigo território dos Estados Unidos da América, em meio a mamutes, manadas de bisões e Deus sabe lá o que mais, eu providenciaria a internação imediata do sujeito.

domingo, 30 de setembro de 2012

Uma História Verdadeira, Segundo Quem a Contou

por Jorge Candeias


Se tu, leitor, me emprestares uns minutos da tua vida, eu conto-te uma história. É uma troca justa, parece-me, até porque quem ma contou jura a pés juntos que a história é verdadeira. Não que se tenha passado com ele, nota bem. Ele próprio a ouviu contar a alguém que um belo dia encontrou nunca me chegou a revelar onde. Mas diz que o relato que me fez é precisamente o que esse conhecido lhe fez a ele, palavra por palavra, tintim por tintim, com os palavrõezinhos todos tal e qual. Duvidas? Eu também duvidaria se não o conhecesse, mas conheço. Já fui testemunha de extraordinárias proezas de memória por parte deste meu amigo. A princípio ficava boquiaberto, não acreditava, achava que tinha de haver ali truque, uma qualquer consulta a fontes que o meu olhar atento não vislumbrava, um qualquer ventriloquismo. Depois vim a saber que não. É um tipo estranho, por vários motivos de que adiante talvez te venha a falar, mas o principal é a memória. Memória eidética, parece que é assim que se chama aquilo de que sofre. Sim, “sofre” é a palavra certa. Imagina-te a nunca esquecer nada, nem a mais insignificante ninharia, nem a cena mais traumática, e talvez compreendas até que ponto ele pode parecer desaparafusado ao primeiro contacto. Na verdade faz um pouco de propósito. Exagera. Diz que assim afasta logo aqueles que não prestam. Que evita ter depois de recordá-los muitas vezes.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Cientista


por Fernando Soromenho

NA: O autor agradece a Jorge Candeias as valiosas sugestões de revisão.

O dia em que o mundo acabou começou para o cientista como outro qualquer. No seu laboratório, imerso nas profundezas do oceano Atlântico, o cientista testava a criação daquelas terríveis singularidades a que os comuns chamavam buracos negros. A cada dia que passava a sua frustração aumentava; sabia ser possível que algures, na Europa, nos Estados Unidos ou na China ou, pior ainda, nas Arábias, algum outro cientista, daqueles com grupos de trabalho imensos, constituídos por estagiários mal pagos mas brilhantes, conseguiria antes dele criar, manter e manipular uma das singularidades que procurava.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A Rapariga de Areia


por G. B. Nunes


Quando o Sol roça enfim a linha ténue do horizonte, a areia começa a descansar. Para trás vão ficando longas horas de esmagamento sob o calor tórrido de corpos, de remeximento pelo deambular frenético de pés, de andares, de corridas, de jogos e passeios. Ainda se vê gente na praia, os últimos retardatários, mas a babuja está agora entregue a gaivotas e a pulgas-de-areia que aproveitam a maré baixa para sair das tocas. Um pouco mais acima a areia cobre-se com uma faixa entrecortada de algas secas, trazidas pelas marés-vivas da véspera e ainda não apanhadas por ninguém. O mar continua revolto, desfazendo-se em espuma que vai escurecendo com o recuo da luz, mas para a areia o estrondo solitário da rebentação é uma mudança bem-vinda do coro de gritos e gargalhadas de horas antes. Estes ainda se ouvem, mas mais rarefeitos, em ecos longínquos que ricocheteiam na falésia. Vêm dos restaurantes que a debruam e derramam luzes frias sobre círculos cada vez mais isolados de praia.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O Pacto Macabro da Velha Antonha


por Afonso Luiz Pereira

NE: Este conto está escrito em dialeto nordestino. Temos algumas palavras e expressões mais específicas desse dialeto hiperligadas para que o leitor interessado possa consultar o seu significado. Deixando pairar o ponteiro do rato sobre elas, obterá uma explicação rápida; clicando será enviado para o Priberam ou a Wikipédia.


O caboclo Bentinho era homem de coragem. Ah, era sim. Não havia vivente neste mundão de meu Deus que botasse dúvida de sua macheza na frente das fuças dele, não senhor. E matador também! Sim, muito matador ele era, pois não se metia em encrenca braba com a qual o cabra da peste não resolvesse na ponta da faca. Nas suas costas já se botava por riba uma boa dezena de desafetos, que ele tinha mandado desta pra melhor. A fama do homem corria longe. Muito além das terras que faziam fronteira com a pequena cidade de Juazeiro, onde ele morava, contavam-se os causos de sua valentia. Era assim o caboclo Bentinho: não tinha medo nem de homem nem de bicho e, dizia-se inté, tampouco de assombração!

sábado, 28 de julho de 2012

O Gafanhoto

por Álvaro de Sousa Holstein


Porque os deuses são o mais das vezes vingativos, todos os cuidados são poucos.
Lembro-me bem de que, após ter pisado um escaravelho, um homem foi fulminado. Os jornais noticiaram o caso como se se tratasse de uma estranha coincidência, mas apesar de tudo uma coincidência e nada mais.
Alguns anos depois assisti pessoalmente, numa das minhas idas ao Príncipe, à morte por esmagamento de um homem após ter esborrachado uma borboleta noturna.
Estes dois casos foram erodindo um espaço na minha imaginação e tornaram-se numa ideia recorrente.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O Jantar


 por Tiago Martins Gama

NA: O autor agradece a Luís Rodrigues e Jorge Candeias as valiosas sugestões de revisão.

A família Silva jantava, como era habitual, à luz intensa das lâmpadas da cozinha. Só não era habitual o pequeno Henrique comer a sopa com tamanha avidez. Empanturrava-se ruidosamente, numa sofreguidão inaudita.
— Estou putrefacta.
— Quê, Maria? Estupefacta? Realmente, o catraio...
— Não — cortou Maria — estou putrefacta.
E a sua carne em decomposição espalhou-se pelos mosaicos do soalho.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Testemunhas

por Jorge Candeias


Caí na asneira de abrir a porta sem primeiro espreitar quem lá vinha.
Eram duas ovelhas, muito empertigadas, muito eretas sobre as patas traseiras. Uma trazia uns oculinhos redondos empoleirados sobre o focinho; a outra transportava uma pasta encaixada entre uma das patas dianteiras e o corpo coberto de alvos caracóis lanudos. Fiquei a olhá-las, embasbacado, sem reação.
— Boa ta-a-a-a-arde, irmão — começou a dos oculinhos. — Andamos a espalha-a-a-a-a-ar a mensa-a-a-a-a-agem do Senhor. Se tive-e-e-e-e-er um minutinho…
Recompus-me num instante. Tenho observado com frequência que existe uma estranha magia em certas palavras e expressões.
— Lamento imenso — contrapus, apressado — mas não tenho. Apanharam-me mesmo a meio do almoço. Um ensopado de carneiro de-li-ci-oso. Com licença.
E fechei a porta.
Imaginam o alívio?

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Variável da Imponderabilidade


por Tibor Moricz


A grande sala onde os resultados do pleito eram observados tinha pouco movimento, além das câmeras de TV, como era de praxe. Apenas dois ou três técnicos e o candidato cujo mandato ainda prevalecia e que agora concorria à reeleição, disputando o cargo de governador de Nova Jersey com outros concorrentes, esses fora dali, em seus lóculos particulares, no aguardo dos resultados que lhes seriam transmitidos através de suas IA pessoais.
John Mitchell aguardava o momento em que procederia com o ritual repetido de quatro em quatro anos desde que iniciara carreira política. Aprendera que sua ascensão vitoriosa advinha de sua férrea vontade e determinação, além da oratória e de seu poder catalisador.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Sem Maneiras

por João Ventura

NE: por pedido expresso do autor, este conto está escrito "à antiga".
 
Ao longo de séculos, a quantidade de informação armazenada foi crescendo exponencialmente. E a necessidade de aumentar a capacidade de armazenamento era permanente.
Para a resolução definitiva deste problema podemos identificar alguns marcos fundamentais:

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Pandorama

por Jorge Candeias


Tentou convencer-me de que não era deste planeta.
Tentou convencer-me até de que não era deste universo. De que tinha nascido num sítio com seis dimensões em vez das nossas quatro. De que tinha uma forma indescritível, mas que esta nada tinha em comum com a cabeça e tronco e pernas e braços que eu estava a ver na minha frente.
Tentou convencer-me de que alguém um dia lhe tinha dado uma caixa. De que lhe tinha dito para nunca, de modo algum, fosse pelo que fosse, a abrir.
Disse-me que a abriu.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Decepções da Paternidade

por Miguel Hernâni Guimarães

NE: por pedido expresso do autor, este conto respeita as regras ortográficas anteriores ao AO90... embora só uma palavra no título fosse alterada com as novas.

Quando Miguel foi buscar o filho ao terminal do submaglev, deu com ele lavado em lágrimas e carrancudo. Encheu-o de perguntas mas a única resposta que o miúdo lhe deu foi virar-se para a janela, de bochecha encostada ao punho e cotovelo apoiado no braço do banco, observando com olhos baços os prédios decrépitos do centro histórico enquanto a velha carripana da família era lentamente conduzida até casa pelo serviço central de controlo de tráfego.
Miguel acabou por desistir. Quando o raio do puto ficava com aqueles humores não havia nada a fazer. Era deixá-lo choramingar até ao fim. A mãe logo lhe arrancaria o que o tinha posto naquele estado. A conta-gotas, que o miúdo era casmurro. Portanto fez o mesmo que o filho: apoiou o cotovelo ao braço do banco, encostou o punho à bochecha e pôs-se a ver a paisagem.

domingo, 8 de julho de 2012

A Injeção Financeira

por Jorge Candeias


Andava a sentir-se pobre nos últimos tempos. Olhava à volta e só via coisas que não tinha, lugares que não visitara, atividades que não experimentara. Decidiu que precisava de uma injeção financeira. Dirigiu-se, portanto, a uma farmácia, comprou uma seringa das descartáveis mais baratas, e voltou para casa.
Preparou o caldinho na mesa da cozinha. Reuniu a água, o limão, a colher e o x-ato, verificou que tinha gás no fogão, abriu a carteira e tirou de lá a última nota de cinco euros. Desfê-la com o x-ato em bocadinhos quase microscópicos, deitou-os na água e no limão, despejou tudo na colher, com cuidado para não derramar, tirou a seringa da embalagem e encheu-a até cima. Atrapalhou-se um momento quando reparou que se esquecera do garrote, foi à procura de algo que servisse, encontrou um lenço e enrolou-o ao braço, apertando bem. A veia foi fácil de descobrir. Injetou tudo.
Não ficou mais rico. Em vez disso, apanhou uma grande moca. É que a nota, logo antes de lhe ir parar às mãos, tinha sido usada por outro tipo qualquer para snifar uma valente dose de coca.

Editorial (Primeiro e, Provavelmente, Único)

por Jorge Candeias

Bem-vindos ao Infinitamente Improvável. Sentem-se, fiquem em pé, deitem-se no chão, façam o pino, estejam à vontade. Este espaço acolhe bem bizarrias, portanto não se acanhem em bizarrar por aí.

Não vos vou explicar o que é o Infinitamente Improvável; há ali em cima uma página especificamente para isso, chamada "Sobre". Podem, e devem, escarafunchar por lá. E também podem, e devem, escarafunchar nas outras páginas ao lado. Encarem essas páginas, e outras que eventualmente se lhes venham a juntar, como uma espécie de editoriais permanentes, no que os editoriais costumam ter de explanação de propósitos e intenções. Este editorialzinho destina-se apenas a inaugurar o II, a dar-vos as boas-vindas, a atirar ao vento um par de porquês e a dizer o que se vai seguir no imediato.