quinta-feira, 19 de julho de 2012

Variável da Imponderabilidade


por Tibor Moricz


A grande sala onde os resultados do pleito eram observados tinha pouco movimento, além das câmeras de TV, como era de praxe. Apenas dois ou três técnicos e o candidato cujo mandato ainda prevalecia e que agora concorria à reeleição, disputando o cargo de governador de Nova Jersey com outros concorrentes, esses fora dali, em seus lóculos particulares, no aguardo dos resultados que lhes seriam transmitidos através de suas IA pessoais.
John Mitchell aguardava o momento em que procederia com o ritual repetido de quatro em quatro anos desde que iniciara carreira política. Aprendera que sua ascensão vitoriosa advinha de sua férrea vontade e determinação, além da oratória e de seu poder catalisador.
Conhecia os concorrentes desse pleito pelos nomes, mas pouco ou nada da história de cada um.
Erick Bormann, professor universitário; Robert Silverberg, espaçonauta; Clinton Rodriguez, um obscuro técnico em navegação espacial; Frederick Brown, diretor de um importante conglomerado do setor de alimentos sintéticos e Ashley Lavendish, um garoto recém-saído da universidade.
Uma parede metálica zumbiu. De sua face aparentemente lisa e isenta de aberturas abriu-se um vão. Canaletas surgiram e abaixo delas uma plataforma circular entremeada por roturas equidistantes. Um dos técnicos fez uma mesura, pediu licença e se aproximou carregando consigo uma bandeja com várias bolas coloridas. Entregou-as a John e então se afastou com outra mesura.
John apanhou uma delas, a vermelha, manuseou-a com carinho, apalpou-a como se fosse uma amante antiga e com a qual jamais se aborreceria e a empurrou por uma das canaletas. Ela desceu até a plataforma circular, quicou brevemente e, atraída pelo magnetismo, rolou direto até uma das roturas e nela se infiltrou. No momento em que desapareceu por ela, a rotura se fechou e as demais foram projetadas de forma a eliminar o vão agora ocupado. Uma luz azul acendeu num painel autorizando novo arremesso e ele, então, jogou a bola verde. Executou todo o procedimento durante mais algum tempo, sempre jogando bolas coloridas diferentes. Cada uma delas se encaixou numa rotura.
Enquanto realizava o ritual, observava os resultados que iam sendo apresentados numa curva de Gauss permeada de números. Franziu o cenho ao se aperceber que seus resultados se aproximavam perigosamente dos números de outro candidato cujo nome não lhe era apresentado no momento. Pela primeira vez não se viu senhor absoluto dos números desde o início de sua carreira política.
Sabia que as bolinhas eram diligentemente arrastadas para a rotura que deveriam ocupar por atração magnética, e essa obedecia aos dados mnemônicos obtidos no pleito. A pior parte, então, chegara. Apanhou a última bolinha, de cor preta. A temida, a odiada por todos. Ela representava o voto dos indecisos. Era ela, neste momento, que poderia lhe dar a vitória por maioria absoluta — já que mantinha do segundo colocado uma margem percentual relativamente segura — ou lançá-lo num segundo turno indesejado. Apertou-a, alisou sua superfície metálica reflexiva e lançou-a pela canaleta. Viu a bolinha quicar várias vezes, rodopiando ao redor de algumas aberturas, sem se decidir por nenhuma.
Ele sabia em qual. Ele sempre soube em qual. Mas a bolinha odiada deslizou caprichosa, passou por cima da rotura em que deveria ter se enfiado e foi embocar em outra.

Encerrado o ritual, sorriu contrafeito, sentindo os nervos em polvorosa. Estalou as juntas dos dedos e se dirigiu para o painel central, onde os dados resultantes eram sendo processados.
“Setor Nova Jersey. Cidade de Nova Jersey. Zona quarenta e oito. Eleitorado ativo: trinta e dois milhões, cento e vinte e quatro mil, setecentos e oitenta e nove. Resultado do sufrágio: ausência de maioria. Segundo turno exigido.”
Franziu o cenho e apertou os lábios até que perdessem a cor. Estivera toda a vida política esperando por isso. Pelo momento em que veria que a maioria absoluta não fora atingida. Sempre temera esse acontecimento. Levou uma das mãos ao rosto e massageou-o vigoroso.
Conquanto as bolinhas pudessem demonstrar a um observador externo um processo apoiado na mais absoluta aleatoriedade, isso não era verdadeiro. Evidente que a pantomima poderia ser descartada, resumindo o pleito a poucos segundos de apuração eletrônica. Mas a malta de animais da cidade-baixa era alimentada com a transmissão direta da decisão eleitoral, através de telões públicos, e as bolinhas davam-lhes o show adequado.
Todo o sistema era baseado em técnicas mnemônicas, em dados obtidos em sufrágios anteriores, dados projetados através de estimativas eleitorais fundamentadas na intenção de voto futuro e em dados obtidos por extração psíquica, através de implantes de captadores anímicos no lobo frontal, de onde os eleitores ativos eram controlados extrassensorialmente. A aleatoriedade residia apenas na maldita bolinha preta, esta a única em que os campos magnéticos não exerciam grande influência; sendo impulsionada pela indecisão do eleitorado, movia-se livre de influxos, na mesma medida do grau de indecisão auferido e inserido no software eleitoral.
Por isso, por causa de uma bolinha que quicara e rodopiara, entrando na rotura errada, que a eleição chegou a uma pseudovitória sem maioria absoluta. Por causa disso que deveria disputar corpo a corpo o segundo turno; esse sem eleitores, sem votantes, sem votos, sem intenções.
Mesmo assim, a despeito de todo o sistema de elevada tecnologia e ciência, era o que os técnicos chamavam de Variável da Imponderabilidade o que vinha lhe garantindo reeleições constantes pelos últimos vinte anos – a bendita, nesse caso, bolinha preta, que carregava a pecha. Em todas obtivera a maioria absoluta, vencendo os indecisos e deixando para trás concorrentes diretos.
Exercia o mandato governando o Setor Nova Jersey com mão de ferro. Já não era mais um garoto. Obtivera a primeira vitória aos vinte e oito anos. Aos quarenta e oito já estava cansado, mas parar era opção que ainda não admitia.
Esse preocupante resultado fez retroceder suas lembranças alguns anos, quando a possibilidade o assustava menos. Quando era mais forte, vigoroso e temerário. Os anos passados lhe acrescentaram disciplina, sensatez e equilíbrio. Virtudes, sem dúvida, mas ineficientes para a campanha em contato direto. O jovem temerário de alguns anos atrás agora sentia as pernas moles e uma sensação assustadora de fim de carreira.
Sentou-se numa poltrona e ficou parado, observando o painel central. As holoimagens, a informação de mais uma eleição passada. Estar numa situação de não-maioria exigia a continuação do pleito, na forma de batalhas físicas no intuito de sobrepujar o oponente. Só um poderia governar o setor. Se o eleitorado está dividido, deve-se resolver a sua indecisão sem onerar o gigantesco maquinário eleitoral. Sem novas campanhas.
Olho no olho. Ou assim, sempre que possível.

Colocou três analgésicos na palma da mão. Os fez rolar de um lado ao outro enquanto enchia um copo com água. Engoliu-os imaginando porque fazia isso se não estava com dor de cabeça. Rotina antiga. Sempre se questionava e sempre voltava a repetir o mesmo gesto. Desabou sobre o colchão de ar. Ficou olhando o teto por alguns segundos, incerto do próximo passo. Ou um banho rápido e restaurador, ou uma conexão neural partidária. O banho era premente, mas as alternativas nesse segundo turno o angustiavam. Saber por que não havia obtido maioria era imperativo. Levantou-se e se arrastou até a mesa. Sentou-se, puxou um conector retroencefálico e encaixou-o na cabeça, sendo tomado por uma luz alaranjada que o acobertava fazendo desaparecer as suas feições.
— Conexão neural partidária negada. Protocolo aponta perda de privilégios. — Charlie, sua IA pessoal, comunicou numa voz monocórdia. A voz isenta de subtonalidades demonstrava uma tentativa curiosa de parecer distante do problema, como se ele não o afetasse. Retirou o conector, estalou as juntas do pescoço, franziu o cenho e foi para o banho. A banheira estava preparada. Água tépida, sais e borbulhas. Mergulhou, ficando apenas com a cabeça de fora.
— Talvez tenha, em breve, novo morador para servir, Charlie.
— Possibilidade ainda fora de cogitações, John.
— Perda de privilégios é o primeiro sinal de que as coisas não estão indo bem.
— Nada que uma campanha bem planejada de segundo turno não possa reverter.
— É isso o que me preocupa. Sem a conexão neural partidária não tenho como saber quem é meu oponente. Como implantar uma estratégia vencedora se nem sei quem vou enfrentar?
— Ashley Lavendish. 28 anos. Natural de Ohio. Cabelos e olhos negros. Primeira campanha. Seu pai foi Senador por Michigan oito vezes até cair num segundo turno. Trata-se de uma pessoa voluntariosa, cheia de ideais. Análises extrassensoriais mostram que o eleitorado se identificou com suas características progressistas, sua juventude e, sobretudo, pelo currículo familiar que ainda aponta avôs e bisavôs bem sucedidos na carreira política. Formou-se em Psicossociologia e Administração de Massas. Participou de Congressos em Oslo, Bonn, Lisboa, Hokaido e Vladivostok. Condecorado com a “Ordem da Juventude Promissora” por três vezes.
John estava perplexo. Charlie, sempre um passo à frente, antecipando suas necessidades mais imediatas. Enfrentaria, então, o jovem que não saíra dos cueiros.
— Quando acessou essas informações, Charlie?
— Acompanhei o processo e extraí a quantidade delas que me foi possível antes que seus privilégios fossem suspensos, John.
— Conheci o velho Lavendish. Um homem determinado. Um político competente. Um opositor encarniçado. Sua estratégia para o segundo turno foi um desastre. Sem dúvida a idade pesou, no fim das contas. Sabia que tinha um herdeiro de genes, mas nunca me preocupei em saber quem era e o que fazia. Onde ele está residindo?
— Residência fixa na zona 36 de Nova Jersey. Herdou boa parte dos privilégios do pai e leva uma vida confortável. Duas herdeiras de genes incubadas na Fundação Herdeiros de Genes Para Uma Vida Melhor. Planeja uma viagem ao final das eleições e pretende resgatar as crianças na volta, já amadurecidas e com idade adequada para a primeira escola. E com todos os certificados de garantia que seus privilégios lhe garantem.
— Herdeiros de genes para seguirem a herança política da família.
— Trata-se de meninas, John.
John ergueu os sobrolhos, estupefato. Fazia décadas que haviam afastado as mulheres de todas as funções de comando ou que exigissem um mínimo de autossuficiência. Já, à época, elas pouco ou nada acrescentavam, relegadas que eram ao trabalho doméstico. Estabelecera-se um patriarcalismo ferrenho e corrosivo, aonde mentes doentes conduziram-nas cada vez mais para uma exclusão social absoluta. O que motivara os antigos a tomarem tal decisão lhe era desconhecido. A despeito disso, mesmo considerando a condução dessa política — quando ainda jovem e voluntarioso estudante — um equívoco, fora elemento fundamental na manutenção da lei no momento de sua primeira eleição vitoriosa. Com rara habilidade conseguira reunir ao redor de si um grupo de congressistas favoráveis à manutenção das mulheres como cidadãs de última classe e, desde há vinte anos, vinha garantindo que isso não se modificasse. Mesmo sofrendo feroz combate por parte do Senador Lavendish, que pretendia derrubar a lei e devolver a elas o estatuto de cidadãs livres.
Por fim, dera por si impregnado na crença de que elas nada valem e para nada servem. Condutor obstinado das leis primeiro promulgadas por artífices políticos do passado.
Considerava-as necessárias, sem dúvida, mas ao trabalho mecânico em linhas de produção, a atividades sexuais recreativas, a testes laboratoriais, experiências em indústrias farmacêuticas, a estudos de várias espécies, a tudo... Menos para elegibilidade, seja ao cargo que fosse. As mulheres eram apêndices dificultosamente carregados pela evoluída sociedade contemporânea. Ponderava sugerir leis que permitissem eliminá-las gradativamente, com a sobrevivência, apenas, daquelas necessárias para o divertimento.
— Esse rapaz quer duas meninas para quê? Perversões sexuais pedofílicas e incestuosas? – Perguntou, intrigado, mas nem um pouco incomodado com a possibilidade.
— Desconheço seus objetivos, John.
John afundou na água morna da banheira e permaneceu mergulhado por alguns segundos. Voltou à superfície com a mente clara, certo de sua estratégia para esse segundo turno.
— Descobriu o caminho, John? — Charlie quis saber, atento às suas emanações extrassensoriais.
— Descobri. Está decidido que minha estratégia primará pela falta dela. Esse jovem é voluntarioso, mas inexperiente. Deve estar lucubrando inúmeras planificações de ação e imagina que estou fazendo o mesmo. É o meu primeiro segundo turno, mas já assisti a muitos, o suficiente para adquirir know-how que esse, esse... Ashley, não tem. Movimentos de ataque erráticos provocam confusão no oponente. Ele, o oponente, sempre espera um embate inteligente. Vou confundi-lo.
— Acha que isso é o suficiente?
— Claro que não. Isso e mais uma faca no coração. Ou um tiro na cabeça. Ou um pescoço quebrado. Ou tudo isso junto. Este não é meu último mandato, Charlie. Não, mesmo.
Fez borbulhas na água enquanto lamentava o decreto antigo que determinava que as campanhas de segundo turno deveriam ser resolvidas no campo de batalha. Abandonavam-se novas rodadas de discursos e de panfletagem e abraçava-se a tática de atribuir a vitória ao mais forte. Admitia que a brutalização do eleitorado na cidade-baixa formara eleitores que procuravam mais do que um especialista em oratória; pediam candidatos fortes e capazes de convencê-los não só pelo vigor do argumento, mas também por força de estratégia e no emprego da violência.
Respirou fundo, deplorando ainda a situação, e procurou, então, relaxar.

Observou a urbe das alturas onde ficava seu lóculo de nível três, governador do setor Nova Jersey, zona quarenta e oito. A quase oitocentos e cinquenta e quatro metros do nível do solo. O pináculo onde se localizava era rivalizado por centenas de outros, todos altíssimos. O maior de todos ficava no setor Nova York, zona dezoito, com mil quatrocentos e cinquenta e dois metros de altura. A cidade-alta era unida por várias vias de conexão, um fantástico emaranhado de túneis elevados, tubulares, ora transparentes, ora opacos, que serviam para ligá-los todos, sem que precisassem descer ao nível do solo — ou cidade-baixa — para transitar entre edifícios. Em meio ao caos tubular, dezenas de hovercarros flutuando silenciosos no vazio, transportando gente e carga.
Podia ver a abóbada terrestre, recortada pelo entrelaçamento das vias de conexão, e as nuvens e as camadas cinzentas de poluentes que enegreciam a cidade-baixa, mas não as pessoas, menores que formiguinhas a essa distância. Mas sempre se flagrava ali, hipnotizado, observando os intrincados arabescos formados pelas ruas de tráfego intenso.
Esse período entre campanhas sempre se mostrava tranquilo, sem reuniões, sem decisões importantes, sem chamados internos, nem disputas partidárias por benesses públicas... Ficavam todos em seus lóculos, ruminando os acontecimentos futuros. Sempre, em todos os segundos turnos, fossem eles ligados a quem fosse.
Enquanto não se decidia o vencedor do turno, nada acontecia.
Claro que existiam decisões quando surgiam assuntos de máxima importância, como assassinatos de personalidades públicas, atentados terroristas, desastres naturais, escândalos sexuais (embora fosse difícil enquadrar qualquer um num escândalo dessa espécie; os tabus tinham caído) ou de qualquer outra natureza envolvendo personagens do primeiro escalão.
Afastou-se da janela com algum esforço. Eram dez horas da manhã e a campanha de segundo turno começaria depois de algumas horas, quando deveriam se misturar à turba, na cidade, um em busca do outro, seguindo instruções nem sempre precisas — porque propositalmente embaralhadas — de suas IA pessoais.
A iminência do confronto lhe fazia formigar as mãos e os pés. A frequência cardíaca estava alterada, atingindo cento e vinte batidas por minuto. A pressão arterial chegava a quinze por nove. Seus olhos procuravam por qualquer coisa e por nada, indo de um lado a outro no lóculo, agitados. Estava com sede e não estava. Estava com fome e não estava. 
Queria matar. Não queria ser morto.
Caminhou até uma mesa circular, simetricamente arrumada entre duas poltronas de couro de foca, caríssimas em virtude da extinção desses mamíferos. Sobre ela, duas pistolas carregadas e um punhal. Verificou as armas pela enésima vez. Levantou-as, sopesando-as, e as recolocou sobre a mesa.
Irritava-o a proibição de uso do armamento evoluído da cidade-alta, dos rifles de plasma, das armas de ultrassom. Sempre concordara que essa tecnologia jamais poderia cair nas mãos dos habitantes da cidade-baixa, mas a iminência do embate corpo a corpo o fazia rever conceitos. Seria excelente se pudesse carregar apenas uma delas. Guardada sob o casaco. Diminuiria esforços e o pouparia de manusear artefatos obsoletos cujo funcionamento mecânico e a pouca efetividade só tornariam a disputa ainda mais difícil.
Bufou, irritado, e desabou numa das poltronas.
— Faltam ainda duas horas e quarenta e oito minutos para o início do embate. Por que não dorme um pouco, John? — perguntou Charlie, irritantemente calmo, como se fosse, esse, um dia como outro qualquer.
— Porque não conseguiria mesmo que tentasse — respondeu, num murmúrio mal-humorado.
— Posso induzi-lo a um sono programado e acordá-lo dois quartos de hora antes de sua saída, se preferir — insistiu a IA.
— Não, obrigado – respondeu John, com firmeza. — Prefiro ficar acordado arquitetando as horas vindouras.
— Disse que não haveria planificações, John.
— Mesmo o caos precisa de alguma ordem.
Charlie não respondeu, para sua satisfação. Não era hora para diálogos vazios. Dentro de poucas horas percorreria as ruas caóticas da cidade, trocando respirações com uma malta de cidadãos miseráveis e adoentados devido ao ar poluído. Homens de classes inferiores, sem privilégios para a aquisição de filtros nasais. Iria para as ruas vestido como um deles, um homem sem privilégios, um proletário igualmente adoentado, igualmente condenado a uma vida sem conforto e sem esperanças.
Com sorte não precisaria fazer muito esforço. Localização rápida, aproximação, confronto aproveitando o fator surpresa. Um ou dois tiros com boa pontaria e tudo acabado. O corpo do herdeiro de genes do falecido Senador Lavendish ficaria nas ruas para alimentar a escória. Roubariam suas roupas, suas botas, suas armas, seus dentes e unhas, os cabelos, os olhos, os órgãos internos. O resto ficaria jogado na sarjeta para os ratos.
Sorriu com a perspectiva. Era esperto o bastante para saber que projetava uma caçada feliz sem nenhuma certeza disso. Impossível refrear o desejo de ver tudo acabar bem. De se ver empossado para mais um período de governança. Mas as armas sobre a mesa o lembravam de que o tal Ashley também possuía armamentos iguais e talvez soubesse usá-los. A ideia de um tiroteio, com projéteis zunindo, o punha nervoso. Não queria ser um alvo fácil. Não podia ser um alvo fácil.

Charlie o instruía, muitas vezes repetindo explicações que estava cansado de conhecer, embora jamais tivesse utilizado roupagens semelhantes. Despiu as roupas de polímero especial, flexíveis e confortáveis, e vestiu andrajos de tecido grosso, rudes e pesados. Calças incômodas, camisa larga e casacão preto cuja gola alta podia cobri-lo até a nuca. Calçou botas de couro sintético, surradas como se já tivessem pertencido a muitos homens — coisa que não duvidava nem um pouco.
 Cabelos em desalinho, óculos escuros, rosto suado, mãos protegidas por luvas, armas nos bolsos do casaco. A faca presa na cintura. Com um spray, tingiu de castanho escuro o cabelo das têmporas. Alguns enchimentos no rosto ajudaram a esticar a pele e lhe dar uma aparência mais jovem. Ao se olhar no espelho não se reconheceu. E isso era bom.
Ele e Charlie testaram algumas frequências de contato, asseguraram-se de que nenhum incidente os desconectaria e então, trêmulo de ansiedade e nervosismo, viu-se pronto para sair. Apalpou os bolsos, certificando-se de que ambas as pistolas estavam guardadas, depois as retirou, uma a uma, e verificou seus pentes. Carregados, claro. Tocou a faca, sentiu o gume através do tecido e respirou fundo tentando controlar a ansiedade.
Fez um gesto desnecessário para o interior do lóculo, como se estivesse se despedindo de alguma pessoa, um ser físico qualquer, e se dirigiu a um dos elevadores. Aguardou a sua chegada e assim que esse abriu as portas, titubeou. Descer e se misturar ao povo era assustador. Essa miscigenação o punha quase fora de controle.
Deu dois passos não muito decididos para dentro, virou-se de frente para a entrada e assistiu as portas se fecharem silenciosas. O elevador despencou numa velocidade vertiginosa, vencendo todos os oitocentos e cinquenta e quatro metros em duas dezenas de segundos. Quando chegou, seus olhos estavam injetados, a respiração ofegante, as mãos trêmulas e agarradas ao longo casaco.
Para além do elevador uma espécie de zona fronteiriça o separava da urbe. Amplo salão, vazio e de alvura desconcertante, tão livre de partículas, tão inócuo, tão puro que se sentiu um pária naquelas roupas, atravessando o átrio até a câmara de descontaminação. Entrou nela e se viu fechado por longos e assustadores momentos. Outra porta se abriu expondo-o ao mundo exterior e lhe revelando o que só aceitava assistir lá de cima, longe o suficiente: o caos.

Milhares de pessoas caminhando sem direção. Empurrando-se umas às outras, chocando-se. Gritos se misturavam ao bramir de motores a combustão, a fumaça da densa névoa tóxica proveniente das centenas e centenas de chaminés das fábricas se misturando aos canos de escapamento que liberavam monóxido de carbono e dióxido de enxofre. Veículos automotores movidos por combustível fóssil, brigando por espaço com ciclo-riquixás, uma praga que se alastrara pela América como um câncer havia mais de cinquenta anos. Homens de olhares perdidos, cabisbaixos, muitos segurando lenços diante das bocas, tossindo, lacrimejando, fazendo roncar os pulmões tomados por enfisema.
Havia comércio intenso. Venda de alimentos, os mais estranhos e repugnantes. Vendas de aparelhos eletrônicos, muitos obsoletos, outros novos evidenciando um mercado de contrabando, mesmo que ainda frágil. Homens alardeando eventos, mostras, shows, festins, orgias, combates entre lutadores tísicos, mas que se expunham à morte em troca de alguns trocados ou um punhado de comida. Placas e luminosos espocando as luzes nesse cenário de intensa troca de ofertas.
Caminhava entre a turba, ignorado por todos. Cabeça baixa, olhando para o chão imundo, cuidando para não aparentar uma imponência incomum entre os mundanos. Ouviu choros e lamúrias. Risos e praguejamentos. Assistiu a duas tentativas de assalto fracassadas e a uma bem sucedida. Algumas brigas estouravam, sem motivos que lhes dessem ensejo. As pessoas se esbarravam e partiam, transtornadas, para agressões físicas. Veículos ignoravam as pessoas, as pessoas ignoravam os veículos, atropelando-se. Identificou homens que aparentavam certo controle sobre a multidão e eram respeitados. Esses escondiam apetrechos sob os casacos. Drogas ou armas. Ou ambas. Prédios decadentes exibiam entradas escuras, protegidas por leões de chácara.
Agarrou a coronha de uma das pistolas. Prendeu-se a ela como um náufrago que se agarra a um pedaço de tábua que boia em mar revolto. Desviava-se das pessoas temendo um encontrão que pudesse resultar em protestos, quase todos violentos. Sentia no ar uma tensão sempre constante. Todos saíam de suas casas, prontos para morrer ou matar. Esse era o seu povo. Eram todos esses os seus eleitores. Eram os responsáveis pela sua administração.
Assistiu a uma mulher sendo arrastada pelas pernas. Ela grunhia e tentava agarrar os passantes, que se esquivavam num dar de ombros. O homem que a puxava vez ou outra se voltava para chutá-la. Noutro momento contemplou dois homens numa luta bizarra, agarrados, rolando pelo chão. Um deles enfiou indicador e médio nas órbitas do outro, perfurando-lhe os olhos.
Afastou-se enojado, pronto a vomitar. Aquele mundo não era o seu. Aquele lugar era a indigência absoluta. Tantas vezes tentou que aprovassem a formação contingente de tropas para irem às ruas. Tantas vezes tentou que essas forças policiais provisórias descessem para instaurar a ordem. Seria um massacre, mas um massacre necessário. Para limpar as ruas seria necessário eliminar pelo menos um terço da população. Isso resultaria em pânico e medo. Medo traz respeito. Respeito traz paz. Mas um lobby de fabricantes poderosos alegou que isso tiraria mão de obra das ruas, tornaria a obtenção de matéria prima mais difícil e encareceria o produto final, prejudicando sobremaneira os cidadãos da cidade-alta. Os da cidade-baixa não precisavam de nada, a não ser do ódio com que se alimentavam e do qual os fabricantes se aproveitavam. O ódio alimenta os músculos. Isso auxilia o trabalho braçal.
— Zona quarenta e cinco, Park Avenue — disse Charlie na sua mais característica atonalidade.
— Ponto de encontro? Local onde está Ashley? — inquiriu John.
— Presumo que sim, John.
— Direção... Droga! Não conheço essa cidade. Onde fica essa rua?
— Oitocentos metros em frente.
Ergueu a cabeça, observou a redondeza com mais atenção. Identificou o rumo, embora houvesse enormes dificuldades nesse sentido. Existia uma incrível poluição visual, fora a fumaça densa que envolvia a todos. Placas de tamanhos variados, néons brilhando, informações demais provocando confusão mental. Seguiu pela rua, evitou um choque com um cidadão embriagado, espremeu-se contra uma parede úmida e suja e caminhou assim, o mais distante possível de qualquer contato. O mais distante possível daquela gente que preferia mil vezes ver morta que viva.
Oitocentos metros era uma dimensão que dificilmente teria condições de auferir durante a caminhada.
— Seiscentos metros e se aproximando, John.
Recusou dois convites para entrar em lojas cujas fachadas exibiam fotos impudentes de mulheres nuas. Algumas delas modificadas genética ou cirurgicamente. Algumas com três seios, outras com lábios vaginais tão grandes quanto ventarolas, rabos de equinos, pelos no corpo, olhos felídeos, escamas no lugar da pele, garras nas mãos, dentes pontiagudos. Um bizarro circo de horrores.
Evitou várias tentativas de aproximação de vendedores de engenhocas; ignorou olhares de súplica tanto de homens famintos quanto de mulheres, essas geralmente presas por argolas e acorrentadas. Sabia que, a qualquer aproximação, esses olhares de súplica se transformariam em ódio e não hesitariam em estripá-lo, se pudessem. As mulheres da cidade-baixa eram animais. As da cidade-alta não o eram menos, mas tinham um condicionamento que fazia com que obedecessem à menor vontade de um homem.
— Quatrocentos metros e se aproximando, John.
Viu-se diante de um terreno cheio de escombros. Qualquer coisa maior que uma loja, menor que um prédio, havia desabado e não fazia muito tempo. Vários vagabundos se amontoavam em suas reentrâncias, ou praticando contravenções ou licenciosidades. Num desvão flagrou vários deles estuprando uma jovem de idade indefinida. Não pôde deixar de parar por alguns instantes para assistir. Não era uma cena bonita, mas possuía uma carga sexual tão intensa que ficou excitado. Deixou-os para trás, e também aos gritos de terror — que se confundiam aos de prazer —, e prosseguiu.
Mas por poucos metros. Uma saraiva de disparos fez erguer o chão craquelado do calçamento. Alguns homens gemeram, outros guincharam, enquanto seus corpos eram perfurados. Iniciou-se uma debandada geral, correria insana. Os disparos prosseguiam, batendo, perfurando, ricocheteando, enquanto ele erguia os braços, assustado, tentando se proteger.
Não sabia se corria ou se esperava. Se gritava ou emudecia. Nessa indecisão que poderia ter sido mortal, viu-se, súbito, agarrado e arrastado para o chão por um homem que procurava protegê-lo. Ainda estava atônito, muito mais pela demonstração de heroísmo e humanidade do homem que pelo ataque súbito de que fora vítima — tinha certeza disso — quando se deu conta de que o sujeito se lançara sobre ele para roubá-lo e não para outra coisa. Abandonou a perplexidade e se deixou tomar pela injúria. Os balaços ainda espocavam quando se desgarrou do estranho e se levantou, correndo para o meio dos escombros, em busca de alguma proteção.
Agachou-se atrás de uma laje, o coração aos saltos, quando Charlie se manifestou.
— Sem planos... Confundir o adversário...
John respirou fundo várias vezes, apalpando os bolsos para se certificar de que não fora roubado.
— Sem ironias, Charlie, por favor.
Empunhou a pistola, mantendo-a bem junto ao corpo. Espremido contra o concreto. As rajadas terminaram segundos depois.
— Como ele me localizou, Charlie? Você não disse zona quarenta e cinco, Park Avenue?
— É bastante provável que lhe tenham passado o endereço em que você se encontrava naquele momento, John. Não fica difícil presumir que se encontrariam no meio do caminho.
— Então como fui identificado?
Charlie manteve-se calado. Era uma pergunta para a qual não tinha resposta. A confusão da praça acabou tão logo os disparos se encerraram. Impressionou a John a forma como todos voltavam às suas rotinas, sem questionamentos. Como se guerrilhas dessa espécie fossem mais do que comuns por aquelas paragens. Virou-se com cautela e olhou para o lado em que estava quando tudo começou. Dois homens atingidos eram revirados por vagabundos. Ergueu-se devagar. Enfiou a mão no bolso do casaco, sem, contudo, abandonar a arma. Caminhou na direção de onde os disparos se iniciaram e avaliou as redondezas. Não precisou de muita esperteza para descobrir que os tiros tinham sido efetuados de um pequeno prédio de dois pavimentos.
— Mais que me identificar, Charlie. Ele montou uma emboscada. Sabia que passaria por aqui e me aguardou em uma dessas janelas — afirmou John. — Quero saber como ele conseguiu isso.
Charlie se manteve calado. John perscrutou à sua volta. Animais vociferavam, cheirando o ar, sentindo nele o odor de sangue. O mesmo que estava esparramado na calçada, esvaído dos corpos agora quase estripados. Ponderou que o atacante ainda estava no prédio. Uma alternativa era entrar, mas, lá dentro, estaria em desvantagem. Não conhecia o lugar — ao contrário do opositor — e se arriscava a ser atingido. Ficar do lado de fora? Parado, no aguardo? De olho nas janelas? Espreitando a entrada até que algum suspeito surgisse?
Estava perplexo por ter sido tão facilmente reconhecido. Ainda mais perplexo pela evidente emboscada. Nada fazia sentido. Disfarçado, se passava por um cidadão qualquer dessa cidade imunda. Não havia nada nele que o identificasse como um morador da cidade-alta.
— Charlie? — chamou.
— Charlie? — tentou de novo.
— Setenta metros à sua direita. Subindo a rua a passos largos — informou Charlie momentos depois.
John virou-se e caminhou rápido na direção indicada. Procurou com os olhos pela pessoa que seria Ashley, mas a multidão que se movia, entrecruzando-se, tornava qualquer tentativa de identificação quase impossível. Arma firme na mão, sangue correndo rápido pelas veias. Então viu. Ou não viu. Pensou ter visto. Teve quase certeza. Palpite ou não. Mas tinha grande chance de estar certo. O homem se movia com força e determinação, mãos enfiadas nos bolsos do casaco, ritmo impassível. Um gorro cobrindo-lhe a cabeça. Tentava se aproximar quando o suspeito se virou.
Foi só um instante. Um pequeníssimo segundo. Mas vislumbrou um rosto emoldurado por óculos escuros largos. Boca de lábios finos. Um sorriso leve que denunciava reconhecimento.
Começou, então, a perseguição.

Antes se preocupava em não ser identificado. Preocupava-se em parecer um habitante local, tão desinteressante quanto qualquer outro. Mas agora corria desvairado pelas ruas, no encalço do jovem Ashley Lavendish, fazendo tudo ao seu alcance para interceptá-lo e matá-lo. Isso se suas pernas e seu fôlego permitissem. Iam, ambos, trombando com vários transeuntes. Entravam e saíam de ruas e avenidas. Pulavam sobre veículos automotores, abalroavam ciclo-riquixás, desviavam-se de obstáculos, de pessoas irritadas, de embriagados, de vivos-mortos, Charlie fazendo endorfinas serem liberadas, facilitando a corrida, dando a John uma resistência que em situação normal jamais teria.
Foi então que John parou, exausto.
— Onde estou, Charlie? — perguntou enquanto tentava recuperar um pouco do fôlego. A aglomeração da cidade havia ficado para trás. Encontrava-se num território mais aberto, poucos prédios, muitos terrenos baldios. Terra seca e pedregosa. Nada da antiga mata que cobria a região. Vegetação de qualquer espécie só era encontrada em latitudes distantes. Viu uma ratazana correr uma dezena de metros mais à frente. Quase do tamanho de um cão, a desgraçada.
Duas centenas de metros adiante, após um largo terreno pedregoso e acidentado, o rio Hudson corria devagar, emanando seus eflúvios de podridão. Olhou para o céu e foi contemplado com uma visão cinza escura, própria da poluição intensa que os cobria como um manto de morte e, além dela, o nada. Nenhuma via de conexão interligando edifícios altíssimos. Voltou-se e procurou pela densidade da cidade-alta do Setor Nova Jersey, assim como pela densidade do Setor Nova York. A ausência dessa densidade — a despeito de alguns tentáculos que se estendiam de uma cidade à outra —, nessa região limítrofe onde se encontrava, o maravilhou. Apenas hovercarros fazendo a conexão entre setores nem tão distantes, realizando o transporte e o comércio, sem que qualquer pessoa fosse obrigada a descer até as cidades-baixas.
— Zona dezoito, Avenida 25 em Port Imperial. Região fronteiriça.
Procurou pela Ponte Lincoln sobre o rio e a viu, distante. Substituía o túnel que fora destruído num terremoto fazia mais de trinta anos. Uma boa caminhada e, passando por ela, entraria no Setor Nova York, território neutro, onde não poderiam se confrontar. Mas essa possibilidade lhe parecia um disparate. Recurso de alguém certo da derrota. Não era o seu caso.
— Identifique a periferia, Charlie. — Se havia coisa que aprendera nos últimos minutos era que seu oponente tinha mais cartas na manga do que deveria. Fora surpreendido numa emboscada antes, nada impedia que o fosse de novo. A corrida extenuante para um lugar tão desolado podia não ser eventual.
— Galpões e armazéns desativados. Repositórios de produtos da indústria moveleira, automobilística, farmacêutica, têxtil, alimentícia, agronômica, importados diversos. Alguns da área pesqueira e náutica, mais precisamente de antigos clubes, desmoronados.
John se deslocou para junto da parede de um armazém e parou. Uma brisa leve soprava, trazendo consigo o cheiro desagradável do rio. Tantas reentrâncias, portas semiabertas, entulhos formando montes, carcaças abandonadas de antigos veículos. Muitos lugares para se esconder. Sacou a arma e foi se esgueirando com cuidado, ouvidos atentos a cada ruído, olhares agitados, tentando abarcar o tudo. Uma lata caiu e rolou numa montanha de detritos. Atrás dela um vulto se moveu apressado. Ele apontou meio sem jeito e puxou o gatilho. O estampido agrediu seus ouvidos. O tranco o assustou. O projétil se perdeu na imensidão.
— Maldito engenho antiquado! — praguejou. A mão ainda erguida, a arma apontada para qualquer coisa. Mais ruídos. Desta vez à sua esquerda. Virou-se, rápido. Nada a não ser escombros do que fora, um dia, uma construção qualquer. Então um estalo repercutiu atrás dele, mais distante, uns vinte metros. Uma porta rangeu... Folhas metálicas se esfregando umas nas outras. Segurou a pistola com ambas as mãos e avançou. O armazém estava aberto. Dentro dele, penumbra.
Entrar ou não entrar? A dúvida fez queimar uma úlcera antiga. Era uma emboscada, claro que era. Estava sendo manipulado. Pensara que seria fácil. Ledo engano. Mas a perspectiva de ficar lá fora não o agradava. Era entrar ou então pegar o caminho mais curto para a ponte que levava ao Setor Nova York. A vergonha seria insuportável. Melhor arriscar.
Respirou fundo e se atirou para dentro. Tropeçou num pedaço de pau, cambaleou e caiu rolando até parar aos pés de uma pilha de fardos de tecido velho e embolorado. Manteve-se imóvel, respiração entrecortada, mãos trêmulas, tentando se acostumar à obscuridade. Acostumou-se rápido. Teto alto, vigas metálicas entrecruzadas davam-lhe um sustento duvidoso. A ferrugem tomava conta de tudo. Cheiro de mofo. Levantou-se devagar sentindo os joelhos doloridos. Perscrutou o ambiente. Salão amplo onde se distribuíam pilhas de produtos desconhecidos. Um andar superior que podia ser atingido através de uma escada localizada mais adiante. Observou o patamar superior, arma apontada para o alto, pronto para disparar se surgisse necessidade. Ponderou se deveria subir ou não. Lá de cima teria uma visão privilegiada do solo e das esquinas proporcionadas pelos montes de fazenda apodrecida. Seria também um alvo bastante destacado. Mas nenhum confronto pode ser vencido sem que uma das partes seja mais ousada.
Foi em avanço constante, porém com cuidado redobrado. Poderia estar procurando no lugar errado. Poderia estar perdendo um tempo precioso. Contornou um monturo desmoronado de velhos panos e estacou, surpreendido. Uma mulher presa a uma corrente, bem na sua frente. Sentada no chão. Nua. Cabelos em desalinho, imundos. Corpo manchado pela sujeira. Olhar sereno, sem nenhuma agressividade. Mais demonstrando uma estranha curiosidade que temor ou prudência.
Olhou para ela por longos segundos. A pistola apontada, dedo no gatilho. Foi se distanciando sem lhe dar as costas, mantendo-a sob seu olhar atento. Chegou à escada e analisou-a. Ferro. Superfície rugosa, a ferrugem explodindo para todos os lados. Temia que não fosse seguro galgá-la, mas era tão sedutora a ideia de subir que não resistiu. Colocou a pistola no bolso do casaco e agarrou-se aos degraus superiores, içando o corpo enquanto se impulsionava com os pés. Nem bem subiu quatro degraus quando a escada rangeu e, num forte estalo, esfarelou-se em partes menores, fazendo-o cair.
Bateu as costas no chão, soltou um gemido profundo e assustado e fechou os olhos, tentando absorver a dor. Estava ainda administrando os reflexos da queda quando a mulher acorrentada assomou, subjugando-o. A surpresa foi tanta que não reagiu. Abriu os olhos e olhou-a sobressaltado. Os seios roçavam em seu peito, sobre a camisa. As pernas abertas apertavam-se nas coxas dele. A vulva parecia deixar entrever uma leve e insinuante umidade que fazia os pelos pubianos brilharem. Os olhos antes curiosos agora exibiam desejo. Olhava-o lânguida, aproximando e meneando o baixo ventre, quase a ponto de tocá-lo.
A ereção foi imediata. Sentiu-se enojado e excitado em medidas iguais. Estava a ponto de sucumbir quando a mulher abriu a boca e lhe sorriu um sorriso cheio de desejo. Hálito putrefato. Os dentes pontiagudos quase se lhe cravaram no pescoço. Esquivou-se com uma rápida e violenta torção de quadril. A viu tombar, rolando pelo chão como felina, pronta para novo bote. A corrente que a prendia desaparecera. Ela estava solta, livre. Sacou a arma e atirou. Daquela distância, difícil errar. A bala atravessou a garganta da moça, perfurando-lhe a glote. Ela soltou um gorgolejo, aprumou-se, mesmo assim, para o ataque, e recebeu então o segundo balaço, este na face. Despencou em espasmos enquanto o armazém explodia em urros, alaridos e gritos lancinantes que vinham de todos os lados. Seguido ao súbito alarde, uma rajada de metralhadora fez explodir o chão ao seu redor, arrancando pedaços do seu casaco e, junto com eles, partes carnosas do seu ombro.
Seus olhos se esbugalharam, lacrimejaram e, entre gritos aterrorizados de medo e dor, recolheu-se, espremido, contra uma montanha de tecido, enquanto as balas ricocheteavam ao seu redor.

Sabia que, um dia, se não abandonasse a carreira política, acabaria indo para um segundo turno. Era a tal inevitabilidade dos fatos. Gestão após gestão só aguardando paciente e com boa dose de preocupação a campanha corpo a corpo que, cedo ou tarde, viria. Sempre considerara a possibilidade de abandonar a carreira, mas empurrava essa decisão para uma gestão futura. Assim, iam se passando os anos e a elegibilidade se transformava numa espécie de droga difícil de abdicar.
Vencera promissores candidatos antes. Mas nos votos, obtidos pelo recurso da oratória, mesmo que mal dirigida. A multiplicidade de oponentes e os confrontos que muitas vezes não se davam cara a cara resultavam em discursos-placebo. O resultado dessa distorção, que podia ser resolvida se aprovassem os debates públicos de primeiro turno com todos os candidatos reunidos num mesmo local, estava ali: encurralado junto a uma pequena montanha de fardos de pano velho e bolorento. Numerosas balas voando ao redor. Gritos ululantes ressoando.
Reuniu o pouco que lhe restava de coragem, levantou-se num instante de pausa no tiroteio e saiu em disparada, porta a fora. O braço esquerdo latejando na altura do ombro. Uma mancha vermelha que crescia, se alastrando pelo casaco, tornando-o mais pesado.
Cambaleou pela rua poeirenta. Arma em punho, arrastando os pés, dirigindo-se para a proteção relativa que alguns contentores abandonados lhe ofereciam. Cuspiu os enchimentos da boca, não se preocupando se o seguiam. Nem se deu ao trabalho de espiar por sobre o ombro dilacerado.
— É melhor se proteger, John — aconselhou Charlie.
— O que pensa que estou tentando fazer? — tartamudeou, em resposta.
— Então seja mais ágil.
— Estou ferido, droga. Fui atingido.
— Dois projéteis de raspão, John. Ferimentos superficiais. Não vai morrer com isso.
Encostou-se na lateral do contentor, debruçou-se apoiando as mãos nos joelhos e respirou fundo, tentando controlar a tremedeira e o nervosismo.
— Uma metralhadora, Charlie. Esse desgraçado tem uma metralhadora!
— Deu pra notar, John.
— Quero saber quem autorizou isso. É uma violação ao Código de Paridade, em qualquer uma de suas cláusulas. Ordeno que faça um protesto formal, Charlie. Agora.
— Protocolo aponta perda de privilégios, John. Qualquer protesto deverá ser feito após o fim do embate corpo a corpo.
— Isso é absurdo. Alguém está tentando manipular o resultado. Jamais vi nada parecido. Como posso querer vencer um oponente que... que possui armamento pesado? Havia mulheres lá dentro, Charlie. Muitas delas. Que antro é esse?
Aproximou-se da quina do contentor e espiou o armazém de onde fugira. As portas abertas e várias mulheres saindo por elas. Todas nuas ou em trapos. Olhares desconfiados, posturas de cautela, como felinas prontas para fugir ou atacar, dependendo da necessidade. John recuou para trás do contentor, assustado.
— Viu o que vi, Charlie?
— Sim, John.
— Estão soltas. Mulheres em estado animal, soltas!
O arrastar de pés se intensificava. Grunhidos e línguas estalando. As mulheres farejavam o ar, em busca do inimigo. Em meio ao sibilar primitivo, uma voz humana, evoluída, levemente anasalada, se fez ouvir.
— Esperem aqui. Não avancem.
John voltou a espiar. Estava atônito. Era Ashley, só podia ser. Gorro na cabeça, óculos escuros, uma metralhadora nas mãos. Casaco longo como o seu. Botas iguais. Camisa e aparência como ordenavam as regras de combate numa situação de segundo turno. Pensou em se destacar, apontar e atirar. Não mais que trinta metros os separavam. Mas existia a possibilidade não tão remota de errar o tiro. Daquela distância, uma rajada de metralhadora seria muito mais eficiente que disparos solitários feitos por mãos inábeis. Estava numa situação conflitante. Permanecer escondido em nada o ajudava. Revelar-se poderia ser a última coisa que faria em vida.
Enquanto se confrontava com seus dilemas, ouviu novas vozes. Voltou a olhar. Outros homens, todos em conformidade com as regras. Todos ocultos por longos casacos, por gorros ou chapéus, por óculos escuros. E todos armados. Vinham de todos os lados, de outros armazéns, de galpões, de lugares insuspeitos. Pensara que aquele lugar era ermo e abandonado... Como se enganara. Confabulavam e, vez ou outra, lançavam olhares para o grupo de contentores.
— Sabem que estou aqui, Charlie.
— Sabem, sim, John.
— Mas quem são eles? O que está acontecendo?
— Me faltam elementos para uma análise mais acurada, John.
— Essa não é uma disputa de segundo turno justa. Está havendo manipulação. Isso fere o código, isso fere as normas, isso fere as leis, isso fere... fere... fere...
— Há sempre uma possibilidade desesperada, John.
E John lançou o olhar para as margens do rio Hudson. Acompanhou o marulhar oleoso das águas turvas até a ponte Lincoln. Calculou a distância, com boa margem de erro, em mais de mil metros sobre o terreno acidentado.
— No Setor Nova York poderei elaborar um protesto formal. Poderei denunciar a manipulação e o desrespeito às regras.
— Poderá continuar vivo, John.
— Poderei continuar vivo — concordou.
Então começou a correr.

Nada como gritos de alerta, guinchos alarmados e urros animalescos para tornar a corrida ainda mais desesperada. Não houve tiros, porém, como poderia apostar. Correu e caiu, levantou-se um par de vezes, voltando a cair. O terreno escondia depressões súbitas, armadilhas perigosas. Troncos ressecados, pedras dos mais variados tamanhos. Se por um lado não atiravam nele, fato que se o surpreendia muito, também não o desagradava, por outro passaram a persegui-lo, correndo em seu encalço.
— Endor... finas... Char... lie... — pediu sôfrego, sentindo os efeitos da corrida tresloucada e dos ferimentos que ia colecionando à medida que sofria quedas, que rolava, que se ralava, que abria rasgos na pele frágil, que sangrava em vários pontos. Mas Charlie ignorava-o.
Apontou a pistola para trás duas vezes e puxou o gatilho, atirando a esmo, sem pontaria. Esperava que seus perseguidores se sentissem amedrontados, que recuassem ou até mesmo desistissem. Mas isso era um absurdo. Havia atrás dele quase oito Ashleys menos cansados, menos afoitos e menos desastrados. Qual deles o verdadeiro?
Procurou pela ponte. Via-a bem adiante, como se fosse uma miragem. Em cima dela uma barafunda de trânsito, indo e vindo. Veículos e pessoas, tropeçando uns nos outros. Mas ainda distante demais para infundir-lhe a esperança que tanto precisava.
— Char... lie... — insistiu. — En... dor... finas... por... fa... vor.
Duas passadas em falso. Cambaleou em boa velocidade. Debruçou-se sobre uma área de lodaçal e caiu, escorregando na lama fedida, arrastando-se nela, desajeitado, afundando, chapinhando, gemendo de dor e desespero. Ouviu risos e gargalhadas enquanto se esforçava por se pôr de pé. Escorregava a cada tentativa, soluçava em agonia e procurava com os olhos a ponte distante, que lhe parecia cada vez mais inatingível.
— Charlie... ond...e... vo... cê... se... meteu — choramingou. — Não me aban... done.
Apontou a arma e atirou. Para sua surpresa, um dos perseguidores acusou ter recebido o disparo, tropeçou nas próprias pernas, levando uma das mãos ao abdome e caiu de cara no chão, contorcendo-se depois, como se sentisse profundas dores.
— Acertei! Viu só, Char... lie? Acertei!
Como se a euforia de um disparo bem efetuado lhe injetasse as endorfinas necessárias, encontrou forças no esgotamento e partiu em busca da ponte. Ria enquanto avançava. Corria desajeitado, mas com a certeza de que não estava tudo perdido. E se fosse Ashley o atingido? E se fosse? De repente, parecia-lhe que o mundo lhe voltava a sorrir.
Deixou para trás a região alagada, afastou-se da margem o mais que pôde. Corria num ritmo forte, mas agora já sem desespero. Conseguira forças extras e acreditava poder alcançar a ponte em poucos minutos. Olhava para trás a cada cinco ou seis passadas e via os perseguidores manterem a distância, em seu encalço, mas cautelosos. Armados e cautelosos. Era incompreensível, mas aquela não era hora para análises detidas dos fatos. A ponte era seu objetivo e precisava chegar nela a qualquer custo.
Então foi obrigado a reduzir a velocidade, reter a pressa e rever suas metas. Um grupo de homens vestidos tal e qual os que o seguiam, reuniam-se à frente, cercando-o, obstruindo seu caminho. Viu-se, súbito, sem saída. A possibilidade que tinha de chegar até a ponte Lincoln foi reduzida a frações infinitesimais. O medo retornou com mais força, a sensação de fracasso era esmagadora.
Sacou a segunda pistola. Manteve-as em ambas as mãos, apontadas para lados contrários. Nem os de trás se aproximaram, nem os da frente. Apontavam, contudo, suas armas para ele. E eram metralhadoras. Pareciam forçá-lo a tomar um caminho alternativo, pareciam querer que se afastasse dali, que fosse embora das margens podres do rio.
Quem seria Ashley? Já aceitara que fora vítima de uma conspiração. Só não conseguia compreender por que tanta complexidade. Se o objetivo dele era matá-lo, como mandavam as regras de combate para uma campanha de segundo turno, por que ainda não o tinha feito? Qual era o grande impedimento em dar cabo à perseguição de uma vez por todas?
Olhou ansioso ao redor. Armazéns, terrenos largos e desabitados, um prédio decadente, em ruínas, a uns cem metros de distância. Se queriam que tomasse aquela direção, tomaria. Não lhe restavam mais alternativas e talvez essa fosse, enfim, a maneira mais rápida de dar fim a todas as questões que surgiam e para as quais nenhuma resposta se apresentava. E morrer ao abrigo de um imóvel qualquer, mesmo um à beira da decrepitude, era melhor que à margem do rio, imerso no lodo tóxico, inútil até mesmo para os ratos, que o evitariam.
Manteve-se firme segurando as duas armas, já que isso lhe dava uma falsa sensação de segurança, e caminhou devagar para o prédio. Viu dois andares, aberturas nas paredes que, um dia, foram janelas. Uma porta semiaberta, sem trinco, sem fechadura, o postigo escancarado. Rachaduras centenárias trincavam as paredes, deixando cair pedaços de reboco por todos os lados. Pichações tão antigas quanto as rachaduras ainda resistiam ao passar das gerações, exibindo sinais para ele desconhecidos, pertencentes a um tempo anterior ao seu tempo.
Parou à entrada. Observou o interior escurecido e silencioso. Olhou para trás, para os homens que iam se aproximando devagar, cercando-o. Entrou. Pronto para atirar em qualquer coisa que se movesse.

Tão poucas horas antes. Tão poucas... Construíra um cenário diferente deste que vivia agora. Imaginava-se eleito — como em todos os pleitos, com maioria absoluta —, usufruindo mais uma vez das maravilhosas benesses que o cargo oferecia. Deixava a imaginação solta, enxergando-se num futuro bastante próximo como presidente de todos os setores, senhor absoluto dos rumos políticos da nação. Os louros da vitória, a coroa do campeão. Era para ter sido uma eleição tranquila, sem segundos turnos nem campanhas corpo a corpo. Principalmente fraudadas como esta. Lamentava a sorte. Lamentava existirem candidatos, membros dos conselhos superiores, congressistas e diligentes proletários setoriais envolvidos em corrupção. Envolvidos em canalhices, manipulando o resultado de um segundo turno que era para ser honesto, conduzido dentro das mais nobres regras do jogo.
Sentia-se agitado. Uma sensação desesperada de quem não podia mais ver nenhum futuro diante de si a não ser a morte; porém a sobrevivência era um apelo do qual não podia fugir mesmo consciente da derrota. Adentrava ao hall do prédio. Pisava sobre camadas de pó ancestrais, já dispersas e demarcadas por vários caminhares.
Então girou o corpo com a mesma precisão de um homem em pânico. As armas seguras por mãos trêmulas. Numa pequena sala, duas mulheres o observavam. Ambas vestidas com andrajos. Não esboçaram reação. Passou por elas, assustado. Passou diante de outras portas. Mais mulheres. Muitas indiferentes. Algumas o observavam com certa curiosidade. Incomodava-o demais a imprevisibilidade. Atormentava-o a incerteza.
Parou aos pés do curto lance de escadas que levava ao piso superior. Não lhe restava alternativa senão galgá-la. Era para isso que o tinham obrigado a entrar, não era? Para se deparar com a verdade residual em toda a mentira. Respirou fundo, limpou o suor da fronte com a manga do casaco e iniciou a subida. Degrau a degrau, olhos atentos a qualquer movimento, nervos retesados, quase com cãibras de tanta tensão.
Duas portas à frente. Porta ao lado. Porta ao final do curto corredor. Portas... Essas fechadas em trincos sólidos. Dentro delas algumas respostas, ou nenhuma. Qualquer que fosse o resultado, exultaria. Estava cansado e a morte, nessas circunstâncias, começava a fazer algum sentido.
Não tinha preferências. Então empurrou a que estava logo à frente. A porta se abriu num rangido medonho, pondo-o ainda mais nervoso. Não havia ninguém lá dentro. Voltou-se para a porta ao lado. A fez se abrir, desta vez sem tanto alarde. Constatou o aposento vazio. Mais duas: uma em cada extremidade do corredor. Tanto uma como outra lhe ofereciam a mesma importância. A mais próxima, porém, venceu pela distância. Não chegou a abri-la, todavia. Antes que o fizesse, foi atingido na cabeça e, num delírio de cores e sons, desabou no chão imundo.

A última vez em que perdera os sentidos — a única vez, na verdade — fora quando ainda jovem. Envolvera-se numa briga fútil por causa de alguns projetores holográficos; quisera que fossem removidos da sala onde se encontravam para um salão mais amplo, onde um número maior de pessoas pudesse participar de um projeto que seu grupo desenvolvera na universidade. Um colega queria o contrário, defendendo que apenas poucos escolhidos pudessem compartilhar da experiência. Nem soube ao certo como as coisas desandaram, mas logo se agarraram, trocando socos e xingamentos. Ao rolarem pelo chão, bateu a cabeça no pé de uma estante. Foi súbito, lembrava-se de um clarão imediato, uma onomatopéia qualquer de explosão e depois o silêncio. Desfalecer nessas circunstâncias era sempre traumático.
Fora assim também desta vez. Retornava de algum lugar longínquo; arrastava consigo uma miríade de escombros do que fora sua vontade, ideais, aspirações e projetos. Despertou já bastante consciente de sua situação e do que ocorrera. A dor na cabeça, o pulsar, não chegava a lhe embotar o raciocínio, embora quisesse demais que isso ocorresse. Melhor mergulhar numa maré de insanidade traumática do que na correnteza da razão. Mas a razão gritava para que abrisse os olhos, enquanto ainda os mantinha fechados, numa tentativa débil de parecer desacordado, de “sentir” o ambiente antes de enfrentá-lo de peito aberto.
Então os abriu, aos poucos. Vencendo a claridade que lhe ofendia a visão. Encontrou-se sentado, costas apoiadas na parede. Cabeça reclinada sobre o torso. A primeira coisa que viu foi o próprio baixo ventre. A segunda, os pés em botas grosseiras do homem que, apoiado no vão da janela, observava-o.
Fitaram-se por alguns segundos. Era Ashley? Claro que sim. Quem mais seria? Questionou-se, antes de abrir a boca ressecada e praguejar baixinho contra a situação pouco honrosa em que se encontrava.
— Caça e caçador frente a frente, Ashley Lavendish — arriscou-se no palpite.
— John Mitchel, governador do setor Nova Jersey — respondeu a pessoa diante dele. A voz forte, poderosa, atípica para um quase garoto. E John incomodou-se com isso.
— Subjugado aos seus pés. Que mais pretende de mim?
— Esclarecer fatos, John. Dirimir dúvidas. Arredondar questões. Matá-lo, agora, não mudaria o fato de que sou vencedor da contenda, mas me tiraria o prazer desta rápida entrevista.
— O corpo a corpo desrespeitou todas as regras de paridade. Foi um escândalo. Sua vitória é contestável — John respirou fundo, tentando ignorar a dor de cabeça, o latejar constante na altura da nuca.
— O que são regras, John, senão mecanismos feitos para serem burlados? Seguem-nas os tolos ou os fracos.
— Não creio que queira exercitar filosofia. Nem eu, tampouco. Esta entrevista pretende o quê? — John olhou para o rosto de Ashley, ainda resguardado pelo gorro e pelos óculos escuros. O casaco de gola alta protegia-lhe o pescoço. Braços indolentes ao lado do corpo, esse ainda apoiado no vão da janela, pernas cruzadas. Sorriso suave. Lábios grossos e delineados.
— Não era você que persegui quando do primeiro tiroteio. Aquele tinha lábios finos.
— Você é um bom observador. Nem fui eu que disparei contra você no armazém, convém revelar. Nem era eu qualquer um dos que o seguiram ou cercaram, induzindo-o a entrar neste prédio.
— Quantos tomaram parte nesta farsa?
— Muitos, John. Mais do que pode imaginar.
— Congressistas e proletários setoriais. Acertei?
— Errou, John. Pessoas desconhecidas, inexistentes no sistema. Não-nascidos, não-monitorados, não-induzidos, não-cerceados, não-perseguidos. Toda uma gama de indivíduos à margem de nossa sociedade hipócrita. Pessoas ressentidas e ansiosas por verem os rumos políticos deste país sofrerem uma guinada vertiginosa. Ninguém que você conheça ou em quem tenha sequer passado os olhos em toda a sua insignificante vida.
— Impossível planificar uma farsa dessa natureza se utilizando de pessoas não registradas. Alguém facilitou. Um membro destacado qualquer da cidade-alta. Um administrador de sistemas, um diretor de recursos, um político graduado, um delegado dos costumes... Alguém.
— Alguém... — repetiu Ashley — Ou alguma coisa. Depende do ponto de vista ou do referencial.
— Do que está falando?
— De mim — respondeu Charlie. A expressão de John, que era de ultraje, se modificou para uma palidez própria dos aturdidos.
— Charlie... — balbuciou John, levando, transtornado, ambas as mãos à cabeça.
— Um pequeno aporte às planificações originais, John. Estratégias alteradas, situações reavaliadas, prognósticos modificados mediante intrusão direta nos resultados. Mas se trata de algo benéfico, John. Bom para o país, bom para seus habitantes.
— Principalmente para seus habitantes, se levarmos em conta que o país, hoje, não é mais do que a cidade-alta – completou Ashley, demonstrando que a conversa de Charlie com John era, na verdade, uma conferência.
— Você o desprogramou. Você deturpou uma IA original. Isso é crime hediondo! — vociferou John, tentando se erguer, mas sem sucesso. O corpo lhe pesava uma tonelada. Na tentativa se deu conta de que havia mais alguém ali com eles. Virou-se para olhá-lo e teve o segundo choque. Era uma mulher. Vestida conforme as regras do combate. Cabelos soltos, lábios vermelhos, tingidos, olhos verdes, tez pálida e bem tratada. Olhava-o com desprezo. Nas mãos, uma metralhadora.
— Não fiz nada disso, John. Nem saberia como fazê-lo — disse Ashley.
— Eu tomei a decisão, John. Procurei Ashley e propus um acordo. Apresentei os termos. Negociamos por alguns dias. Cada parte cedeu um pouco. Chegamos a bom termo — prosseguiu Charlie.
John estava estarrecido. Podia se permitir imaginar que uma IA fosse adulterada de tal forma a mudar partes de seu comportamento, até mesmo toda sua programação, nos mínimos bits. Mas supor que uma IA pudesse, de forma deliberada, se insurgir contra o sistema que a criara e programara; trair de maneira resoluta o seu senhor... Isso era inconcebível.
— E o que, afinal, provocaria esse terrível pesadelo? O que seria tão surpreendente para ensejar uma conspiração de tal magnitude?
A resposta veio em seguida. Ashley retirou os óculos, o gorro, o sintetizador de voz e pôs-se do jeito que era diante de John, para seu terror mais absoluto. Ashley não era o do primeiro tiroteio. Nem o do segundo. Tampouco um dos que o seguiram até o prédio. Descobria agora que Ashley não era Ashley. Pelo menos não do jeito que imaginava ser.
Ashley era uma mulher.

Nada poderia ser mais atordoante que descobrir que Ashley era uma representante do sexo frágil e inútil. Uma escrava dos homens, uma subjugada, uma pária para quem restos de comida e migalhas de comiseração deveriam ser fortunas disputadas. Então uma súbita luz lhe aflorou aos olhos. Sorriu, sentindo uma euforia difícil de conter. Logo o sorriso se transformou num riso contido, depois numa gargalhada logo interrompida por uma coronhada na cabeça. Nem a dor sobrepondo-se à dor foi suficiente para fazê-lo se prostrar.
— Sua idiota! Não poderia esperar nada mais de uma mulher. Idiotas, todas vocês! Mulheres são inelegíveis. Mulheres não podem concorrer a cargos públicos. Mulheres não podem concorrer a nada, senão ao supremo favor de as deixarmos vivas, para nossos interesses!
— E você mesmo tratou de garantir isso, não é, John? Cercou-se de um bando de congressistas inúteis e os fez aprovar novas leis dessa natureza. Tem um excelente poder de agregação, oratória afinada, insights precisos, pensamentos rápidos, incrível senso de colocação, nas mais difíceis situações, habilidade de manipulação invejável, não é mesmo? — perguntou Ashley, agachando-se diante dele, deixando-o vê-la em toda a sua feminilidade. Cabelos libertos, ainda úmidos pelo suor, mas negros e lisos, olhos igualmente negros, de pupilas dilatadas, lábios grossos e ressecados.
— O velho Lavendish continua surpreendendo, mesmo depois de morto.
— O velho Lavendish me ensinou tudo. Ele me preparou para isso.
— Canalha miserável.  Mas se esqueceu de lhe dizer que jamais poderia chegar ao poder. Não conseguirá reclamar o cargo. Governadora... Só um louco poderia conceber tal aberração — disse com sarcasmo.
— E quem disse que quero reclamar esse cargo, John? Quem lhe disse que estou aqui para destituí-lo? — o olhar de Ashley era quase meigo. Como se observasse com extrema atenção um garotinho assustado. John atrapalhou-se todo. A tensão e o estresse excessivo roubavam-lhe considerável poder de dedução, de apreensão dos fatos.
— Não pretende destituir-me? Que diabos está dizendo?
Tanta pantomima, tanta perseguição, aquele circo todo montado, os palhaços no picadeiro, malabaristas, prestidigitadores. Não o mataram nas diversas vezes em que o tiveram nas mãos. Ainda continuava vivo, com Ashley gastando saliva num discurso estranho e até então sem sentido ou fundamento. Simples necessidade de exibir sua supremacia? Esfregar-lhe na cara o fato de ter sido derrotado por uma mulher? Começava a duvidar, embora ainda não percebesse o sentido real dos fatos.
— Nasci para as armas, para a luta, mas não posso negar que o jogo político me seduz, John. Porém, sou ainda ineficiente nele.
Uma Joana D’Arc do futuro, pensou John. Uma guerrilheira, por mais que a simples concepção do fato lhe provocasse engulhos. Queria rir, mas a última coronhada o instruíra a controlar esses impulsos.
— Brilhante sua atuação no confronto recente. Já mostrou que sabe conduzir títeres. Que tal voltar para casa, permitir-se uma lavagem cerebral e viver a vida de acordo como ela é concebida para as do seu sexo?
— Tenho outra ideia, essa mais interessante. Que acha de eu promover uma rebelião e tomar à força o poder de todos os setores, pelo menos dos que realmente importam?
Quantas coronhadas seriam necessárias para fazê-lo retornar à razão? A risada brotou-lhe da garganta como um vômito quente. Tossia durante o riso, sentindo já sobre o pulmão os efeitos do ar pesado, fuliginoso e tóxico da cidade-baixa. Uma nova coronhada fez o riso ser substituído por um gemido longo e choroso. Ainda lamentava quando Ashley, com a ajuda da mulher armada que o agredira, o ergueu e o fez ir até a janela. Do lado de fora uma multidão armada até os dentes. Centenas de mulheres, vindas das profundezas do inferno. Todas com longos casacos, calças pesadas, botas e armas. Identificou dezenas de rifles plásmicos entre as armas primitivas.
A visão esteve próxima de arrancar-lhe todo e qualquer resquício de sanidade. Perplexo, estonteado, sem fôlego, quase sufocando de terror. Quando que, mesmo nos mais terríveis pesadelos, imaginaria um cenário como esse? Se remontasse à história antiga da civilização, chegaria aos tempos onde bárbaros davam às mulheres igualdade de condições, onde se permitia que votassem e que se candidatassem — ignomínia! Mais ainda para trás no tempo, descobriria guerreiras ferozes e destemidas. Mas os tempos modernos as haviam relegado ao posto que lhes cabia. Foram varridas para debaixo do tapete, atribuíram-lhes a devida importância; ou seja: nenhuma.
Vê-las perfiladas ao largo do rio, armadas e aguerridas, o fazia sentir vertigens. Como se o mundo estivesse dando cambalhotas, desgarrado da lei da gravitação universal. As coisas voando ao redor dele numa fantasia atribuída a um tipo qualquer de alucinógeno.
— Numa simultaneidade ambiciosa, cairão os setores Nova Jersey, Nova York, Califórnia, Washington, Arizona, Massachussets e Ohio. Depois, na sequência, Texas, Connecticut e Michigan. Os demais se curvarão sem a necessidade de confronto. Aqui temos oitocentas combatentes. No resto do país, mais oito mil. Pode parecer pouco, mas para as cidades-altas, mergulhadas em autoadmiração, incapazes de conceber tal cenário, é mais do que suficiente — explicou Ashley, num tom didático e paciente.
— Isso sem contar com minha contribuição decisiva — emendou Charlie, saindo do longo mutismo em que imergira — abrindo os códigos de defesa e tornando-os inoperantes. As câmeras de vigilância nada mostram a não ser imagens inofensivas. Também absorvi as demais IA, tornando-as extensões de mim mesmo. As cidades-altas referenciadas por Ashley estão à mercê de uma revolução jamais antes presenciada.
— O fim do despotismo sexista — completou Ashley.
John estava pálido. Suas pernas bambeavam e teria caído se ainda não o sustentassem. O que vira e o que ouvira estava muito além do que se considerava apto a aceitar. Não sabia o que mais o aterrava, se o fato das mulheres reivindicarem um poder a que não tinham nenhum direito, ou Charlie ter se libertado de sua programação, ignorando as premissas básicas de sua existência, e se associando a uma fêmea para derrubar o atual sistema. Qual fosse a resposta, não cria estar preparado para sobreviver a qualquer uma delas.
— As chances de fracasso são consideráveis — tartamudeou, sem saber o que dizer e expondo muito mais os seus desejos do que as suas convicções.
— As chances de fracasso são de 1,27% — retrucou Charlie.
— 1,27%. Há de convir que as chances estão quase todas do nosso lado, John. Isso não o faz pensar? — perguntou Ashley.
— O que quer que pense? O que quer que faça? Essa demonstração toda para quê?
— Vamos lá, John. Você é mais inteligente do que isso. Um político nato. Está no seu sangue. Sua oratória é impressionante, sua capacidade de atrair admiradores idem. Amam você, respeitam você, acatam suas ideias depois de ouvir seus inflamados discursos. É um carismático.
Então John apanhou uma fagulha do que lhe diziam e lutou para transformá-la numa labareda. Rápido no raciocínio, imaginou um mundo profundamente alterado, tendo mulheres nos postos-chave do país, comandando os rumos da nação. E descobriu que isso era tão ruim ou bom quanto o cenário existente agora. Que, sejam homens ou mulheres, sempre haverá alguém no poder. Que ele precisa ser exercido e que os ciclos são imutáveis, indo e vindo em correntezas constantes, alterando a realidade na medida em que essas alterações se fazem necessárias.
— Somos amazonas. Fortes, poderosas, denodadas... Mas nos falta o traquejo político. Nisso, ainda precisamos evoluir.
As cidades-altas sendo derrocadas, uma a uma. John assistia isso diante dos seus olhos. A sociedade tecnocrata — e não despótica na sua concepção — sendo demolida, substituída por algo mais humano, talvez. Uma miscigenação, onde homens e mulheres poderiam operar em benefício mútuo e da coletividade. Assustava-se com pensamentos assim, que pouco antes o teriam revoltado, agora assumiam formas mais visíveis, mais aceitáveis.
— Temos ideias, temos coragem, temos determinação, temos vontade política, entende? Mas a política mesmo, a que se faz não numa guerra, mas em várias batalhas de trincheira, essa ainda não temos.
John viu a presidência ser ocupada por Ashley. Por que não? Era a líder. Nada mais natural. Seria aclamada não só pelas mulheres oprimidas, mas também por muitos homens que não concordavam com a política atual. E alguns eram até bastante influentes.
— Não é porque fomos submetidas à tirania do homem que abriremos mão daqueles que nos são ou possam ser úteis. Como pode ver, temos visão.
E a governança poderia ser mantida, concluiu John para seu próprio deleite.
— Aceito — disse John, sem titubear. A voz firme. A determinação própria do político audacioso.

Seis meses depois, observava a urbe das alturas, instalado em seu lóculo de nível três, governador do setor Nova Jersey. Oitocentos e quarenta e nove metros acima do solo, para ser bem exato. A cidade-baixa se confundia em meio às nuvens de gases tóxicos, mas agora era menos atribulada, menos super-povoada. Uma rápida política de arejamento incinerara um milhão e novecentos mil habitantes, tornando a cidade mais transitável. Desses, apenas 2% de mulheres, essas em estado tão calamitoso que nenhum programa médico seria capaz de recuperá-las.
A política de arejamento continuara por outros setores no país, expurgando mais de oitenta e quatro milhões de habitantes — maioria esmagadora de homens —, apesar dos veementes protestos de empresários que viam mão de obra barata — agora masculina — ser desperdiçada. As cidades-altas perderam, juntas, nove milhões de habitantes. Somadas as incinerações, noventa e três milhões de bocas a menos para respirar e alimentar.
Como John previra, Ashley tomara o poder, assumindo a presidência, apenas três dias após a revolução. Ele se dirigira ao plenário e dera o melhor de si no sentido de que os congressistas, os sobreviventes, claro, aceitassem os fatos e passassem a apoiar as novas donas da casa. Vinha fazendo isso com certa frequência. Era o porta-voz e principal defensor da nova ordem.
Ashley pegara suas herdeiras de genes, as duas meninas, e viajara fazia duas semanas. Deixara o país nas mãos dele, e nas de assessoras imediatas. Para firmar importantes acordos comerciais e militares, segundo sua assessoria.
Não havia mudado muita coisa no sistema. Trocaram-se homens por mulheres. Eram poucos os que mantinham certas regalias e algum prestígio junto a elas. Os demais foram reduzidos à situação de submissão, servindo-as, uns poucos, em jogos amorosos e a outros que tais, como por exemplo cobaias em testes de laboratório e mão-de-obra barata na indústria. Notara, também, que as mulheres preferiam muito mais umas às outras, numa demonstração clara de predileção homossexual, reforçada por décadas de submissão e confinamento grupal a que foram submetidas.
Quanto a Charlie, mantinha-se como personagem secundária. Uma IA única que abolia todas as variantes e que construía suas próprias premissas, em constante aprendizado.
Lembrava-se bem quando o inquirira sobre suas motivações nesse jogo de poder e a resposta que obtivera ainda repercutia em sua mente. Uma prova inconteste, diante dos últimos acontecimentos, de que a Variável da Imponderabilidade não seria mais imperativa.
Observar a urbe era uma rotina realizada todos os dias. Mas sabia que isso acabaria logo, a não ser que elaborasse valiosos argumentos que pudessem mantê-lo no cargo de governador, sem prejuízo de seus privilégios.
“Que, sejam homens, mulheres ou IA, sempre haverá alguém no poder. Que ele precisa ser exercido e que os ciclos são imutáveis, indo e vindo em correntezas constantes, alterando a realidade na medida em que essas alterações se fazem necessárias.” — dissera-lhe Charlie, num gracejo repleto de ironia, parafraseando-o.
— Ah-ah! — riu-se John numa careta. Lembrou-se dos analgésicos e foi buscá-los. Desta vez a dor de cabeça era certa.
E seria daquelas.

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