quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Quem Quer Ser Super-Herói?

por Jorge Candeias


— Mas o que me irrita mesmo, pá — disse-me ele enquanto ia arrancando, mastigando e engolindo uma página após outra do livro de Kafka que eu lhe oferecera — é que podia perfeitamente ter sido picado por um bicho radioativo com alguma pinta. Com estilo, percebes? Uma aranha, um escorpião, uma vespa… pá, até um gafanhoto era melhor que a porcaria do peixinho de prata que me picou. — E mais uma página desapareceu perante os meus olhos horrorizados, e mais outra logo a seguir. Tentei consolar-me dizendo a mim próprio que o livro era curtinho e fora uma pechincha, uma edição de bolso não muito antiga comprada ali perto na liquidação de uma livraria que não resistira ao governo da troica e à internet. Sem grande sucesso.


— Realmente — resmunguei, constrangido.
— Não é? — e rás, e mnhom-mnhom-mnhom, e glup. — É que até a porra do uniforme fica foleiro. Parece uma daquelas fatiotas ridículas dos filmes de ficção científica série B do meio do século passado. — Rás, mnhom-mnhom-mnhom, glup. — Como raio me hão de levar a sério com esta merda vestida, não me dizes?
Examinei-o dos pés à cabeça, por reflexo. A descrição era acertada. O homem vestia um uniforme prateado, inteiriço, ou pelo menos com a aparência de o ser, que refletia a luz que nele incidia com um brilho baço. Na cabeça, um capuz descia-lhe sobre a parte superior do rosto, cobrindo-lhe os olhos e o nariz mas deixando a boca a descoberto. Sobre os olhos, tinha o que parecia ser uma espécie de grandes lentes reticuladas que não permitiam ver nada de fora para dentro. Se esse capuz fosse substituído por um capacete, a impressão de ter acabado de sair de um filme antigo seria, realmente, total… pelo menos até o observador reparar nos três apêndices sem utilidade aparente que se lhe projetavam da extremidade da coluna.
— Podia ser pior, suponho — disse eu, tentando consolá-lo.
Pior? — replicou ele, num tom indignado, parando de mastigar. E prosseguiu, brandindo com veemência uma página rasgada. — Pior como, pá? Pior que isto só se fosse uma lombriga, e não podia ser porque as lombrigas não picam. Até um grilo era melhor. Ora, até a porra dum ácaro era melhor que esta merda. — E enfiou a página na boca com violência, como que para vincar bem o que acabara de dizer.
— Bem — contemporizei — há a questão dos poderes. Não estou bem a ver que poderes podiam vir de uma picada de ácaro radioativo. — Enquanto eu falava ele devorava furiosamente mais um caderno inteiro, rás, mnhom-mnhom-mnhom, glup, rás, mnhom-mnhom-mnhom, glup, rás, mnhom-mnhom-mnhom, glup. Baixei o olhar enquanto era percorrido por um arrepio. — O poder de comer pele morta? — acrescentei, com um risinho nervoso.
— Não me fales — resmungou ele, com a boca cheia — de poderes. — Rás, mnhom-mnhom-mnhom, glup. — Sabes que poder eu tenho? — Rás, mnhom-mnhom-mnhom, glup. — Hm? Sabes? Só tenho um. Sabes qual é? — Parara de comer e estava a olhar-me fixamente. Comer papel?, pensei. Mas não me atrevi a transformar o pensamento em palavra. Abanei a cabeça. Ele explicou, com uma voz que pingava amargura — Tenho o poder bestial, que é mesmo um poder bestial, pá, mesmo à maneira para combater o crime, ou cometer o crime, ou o que raio se espera que um tipo na minha situação faça, tenho o poder bestial de me transformar numa personagem do último livro que ingeri. Para comer gajas, não há melhor. — E voltou a atirar-se furiosamente ao livro. Já restava menos de um quarto.
— Ah. Não sabia — disse eu, de súbito distraído por um pensamento perturbador. Depois, dei plena vazão à minha estupidez: — E é permanente?
Ele voltou a interromper a ingestão do livro para me olhar de soslaio. De seguida encolheu os ombros e rasgou mais uma página, rás.
— Tu não és lá muito inteligente, pois não? — atirou-me. — Então achas que se fosse permanente eu tinha este aspeto? Não é nada permanente, pá. — Mnhom-mnhom-mnhom, glup. — A coisa tem três fases — acrescentou, didático. — Primeiro transformo-me, quer queira quer não, depois tenho um período em que posso escolher transformar-me ou continuar com o corpinho com que nasci, e depois deixo de conseguir transformar-me mesmo que queira.
— Não é mau de todo — disse eu, ainda a tentar animá-lo. — E dura quanto tempo?
Rás, mnhom-mnhom-mnhom, glup.
— Depende.
— Depende?
— Pois. Se o livro é bom, dura, se é uma merda nem chega a ter efeito. — Rás, mnhom-mnhom-mnhom, glup. — Aprendi isto às minhas custas depois de me terem impingido uma porcaria sadomaso que parece que anda a vender muito por aí. Empanturrei-me com aquela bosta, e nada. — Rás, mnhom-mnhom-mnhom, glup. — Nem uma transformaçãozinha de pele, nem uma diferençazinha no cabelo, nada. Efeito rigorosamente nulo.
Fiquei calado. Estava a pensar cá com os meus botões que se calhar não tinha escolhido o livro mais adequado para lhe dar. Mas ele interrompeu-me a introspeção.
— É uma maneira de saber se um livro é bom ou não, suponho. É que, ainda por cima, eu detesto livros.
— Como?! — A pergunta simplesmente saiu-me. E meio guinchada. Foi do choque.
— Sim, sim, é isso mesmo — Rás, mnhom-mnhom-mnhom, glup. — Detesto livros. Nunca gostei de ler. Acho estas porcarias umas chatices sem sabor nenhum. A única parte boa que isto tem — Rás, mnhom-mnhom-mnhom, glup — é poder esfrangalhá-los. O pior é o resto.
Fiquei boquiaberto, claro. E entretanto, sem me ligar peva, ele engolia página atrás de página, com uma facilidade que me deixava sem fala. Comia papel como quem devora flãs. Era assustador.
Mas eu ainda não vira nada.
Pois assim que a última página do livro lhe desapareceu goela abaixo o homem soltou um arroto de assombrosa violência, após o que, sem soltar palavra, se despiu por completo, respirou fundo e começou a transformar-se. Foi rápido, mas também foi sujo, repugnante e de deixar os cabelos em pé. Uns apêndices brotaram-lhe do tronco e da cabeça com a velocidade de projéteis, fazendo saltar fluidos impossíveis de identificar, o que fez com que eu me precipitasse atabalhoadamente para longe dele, tentando não ser atingido. Sem sucesso, conforme descobri mais tarde. Outros limitaram-se a mudar de forma com igual rapidez. O corpo alongou-se-lhe, enrijeceu e mudou de cor, enquanto ia gorgolejando e rangendo. Foi com imensa dificuldade que contive os vómitos. Na verdade, creio que só consegui contê-los por já estar mais ou menos à espera daquilo. Vantagens de se ser leitor, suponho.
O que não esperava era que ele se virasse para mim e me perguntasse, com uma voz surpreendentemente humana:
— Então? O que sou eu desta vez?
Engoli em seco.
— Uma… — pigarreei. Voltei a engolir em seco. — Uma barata.
A gigantesca barata ficou imóvel na minha frente, movendo lentamente as antenas de um lado para o outro.
— Uma quê?! — guinchou a barata de voz humana após uns segundos de pesado silêncio.
Eu não disse nada. Não havia nada a dizer.
— Oh com um caraças, pá! Só me faltava mais esta! Uma barata?! Mas que raio me deste tu a comer, sacana de merda?!
— Ka… Kafka — murmurei, sentando-me, e encolhendo-me numa bola bem apertada. Todos aqueles apêndices bucais a mexer-se na frente do meu nariz tinham-me transformado as pernas em esparguete bem cozido.
— Sei lá eu quem raio é esse tal Kafka! E quero lá saber! E a que propósito tenho o nome Gregor na cabeça? Chama-se Gregor Kafka, o tipo? Não, esquece, não me digas mais nada. Desaparece-me mas é da frente antes que te arranque a cabeça à dentada. Uma barata! Ai a puta da minha vida! E o livro é bom? Quanto tempo vou ter de ficar assim? Mas porque é que eu não leio a merda dos livros antes de os comer, porra? Quando é que aprendo?!
Abri a boca para lhe dar uma resposta, qualquer resposta, mas ele não esperou. Soltou um grito de frustração e fúria e desatou a fugir a toda a brida, movendo as seis patas num tal frenesim que era como se algum gigante tivesse acabado de acender a luz, abandonando-me ali, coberto de suores frios e de alívio.
Depois de ele desaparecer na noite ainda o ouvi a gritar ao longe “Gregor Samsa! Porra de Gregor Samsa!”
Não faço ideia do que lhe aconteceu depois.
Nem quero saber.
Cada qual joga com as cartas que recebe, e aquelas eram as dele, não as minhas. E sinto-me muito contente com isso. Quem quer ser super-herói? Eu não!
Livra!

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