sábado, 28 de julho de 2012

O Gafanhoto

por Álvaro de Sousa Holstein


Porque os deuses são o mais das vezes vingativos, todos os cuidados são poucos.
Lembro-me bem de que, após ter pisado um escaravelho, um homem foi fulminado. Os jornais noticiaram o caso como se se tratasse de uma estranha coincidência, mas apesar de tudo uma coincidência e nada mais.
Alguns anos depois assisti pessoalmente, numa das minhas idas ao Príncipe, à morte por esmagamento de um homem após ter esborrachado uma borboleta noturna.
Estes dois casos foram erodindo um espaço na minha imaginação e tornaram-se numa ideia recorrente.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O Jantar


 por Tiago Martins Gama

NA: O autor agradece a Luís Rodrigues e Jorge Candeias as valiosas sugestões de revisão.

A família Silva jantava, como era habitual, à luz intensa das lâmpadas da cozinha. Só não era habitual o pequeno Henrique comer a sopa com tamanha avidez. Empanturrava-se ruidosamente, numa sofreguidão inaudita.
— Estou putrefacta.
— Quê, Maria? Estupefacta? Realmente, o catraio...
— Não — cortou Maria — estou putrefacta.
E a sua carne em decomposição espalhou-se pelos mosaicos do soalho.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Testemunhas

por Jorge Candeias


Caí na asneira de abrir a porta sem primeiro espreitar quem lá vinha.
Eram duas ovelhas, muito empertigadas, muito eretas sobre as patas traseiras. Uma trazia uns oculinhos redondos empoleirados sobre o focinho; a outra transportava uma pasta encaixada entre uma das patas dianteiras e o corpo coberto de alvos caracóis lanudos. Fiquei a olhá-las, embasbacado, sem reação.
— Boa ta-a-a-a-arde, irmão — começou a dos oculinhos. — Andamos a espalha-a-a-a-a-ar a mensa-a-a-a-a-agem do Senhor. Se tive-e-e-e-e-er um minutinho…
Recompus-me num instante. Tenho observado com frequência que existe uma estranha magia em certas palavras e expressões.
— Lamento imenso — contrapus, apressado — mas não tenho. Apanharam-me mesmo a meio do almoço. Um ensopado de carneiro de-li-ci-oso. Com licença.
E fechei a porta.
Imaginam o alívio?

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Variável da Imponderabilidade


por Tibor Moricz


A grande sala onde os resultados do pleito eram observados tinha pouco movimento, além das câmeras de TV, como era de praxe. Apenas dois ou três técnicos e o candidato cujo mandato ainda prevalecia e que agora concorria à reeleição, disputando o cargo de governador de Nova Jersey com outros concorrentes, esses fora dali, em seus lóculos particulares, no aguardo dos resultados que lhes seriam transmitidos através de suas IA pessoais.
John Mitchell aguardava o momento em que procederia com o ritual repetido de quatro em quatro anos desde que iniciara carreira política. Aprendera que sua ascensão vitoriosa advinha de sua férrea vontade e determinação, além da oratória e de seu poder catalisador.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Sem Maneiras

por João Ventura

NE: por pedido expresso do autor, este conto está escrito "à antiga".
 
Ao longo de séculos, a quantidade de informação armazenada foi crescendo exponencialmente. E a necessidade de aumentar a capacidade de armazenamento era permanente.
Para a resolução definitiva deste problema podemos identificar alguns marcos fundamentais:

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Pandorama

por Jorge Candeias


Tentou convencer-me de que não era deste planeta.
Tentou convencer-me até de que não era deste universo. De que tinha nascido num sítio com seis dimensões em vez das nossas quatro. De que tinha uma forma indescritível, mas que esta nada tinha em comum com a cabeça e tronco e pernas e braços que eu estava a ver na minha frente.
Tentou convencer-me de que alguém um dia lhe tinha dado uma caixa. De que lhe tinha dito para nunca, de modo algum, fosse pelo que fosse, a abrir.
Disse-me que a abriu.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Decepções da Paternidade

por Miguel Hernâni Guimarães

NE: por pedido expresso do autor, este conto respeita as regras ortográficas anteriores ao AO90... embora só uma palavra no título fosse alterada com as novas.

Quando Miguel foi buscar o filho ao terminal do submaglev, deu com ele lavado em lágrimas e carrancudo. Encheu-o de perguntas mas a única resposta que o miúdo lhe deu foi virar-se para a janela, de bochecha encostada ao punho e cotovelo apoiado no braço do banco, observando com olhos baços os prédios decrépitos do centro histórico enquanto a velha carripana da família era lentamente conduzida até casa pelo serviço central de controlo de tráfego.
Miguel acabou por desistir. Quando o raio do puto ficava com aqueles humores não havia nada a fazer. Era deixá-lo choramingar até ao fim. A mãe logo lhe arrancaria o que o tinha posto naquele estado. A conta-gotas, que o miúdo era casmurro. Portanto fez o mesmo que o filho: apoiou o cotovelo ao braço do banco, encostou o punho à bochecha e pôs-se a ver a paisagem.

domingo, 8 de julho de 2012

A Injeção Financeira

por Jorge Candeias


Andava a sentir-se pobre nos últimos tempos. Olhava à volta e só via coisas que não tinha, lugares que não visitara, atividades que não experimentara. Decidiu que precisava de uma injeção financeira. Dirigiu-se, portanto, a uma farmácia, comprou uma seringa das descartáveis mais baratas, e voltou para casa.
Preparou o caldinho na mesa da cozinha. Reuniu a água, o limão, a colher e o x-ato, verificou que tinha gás no fogão, abriu a carteira e tirou de lá a última nota de cinco euros. Desfê-la com o x-ato em bocadinhos quase microscópicos, deitou-os na água e no limão, despejou tudo na colher, com cuidado para não derramar, tirou a seringa da embalagem e encheu-a até cima. Atrapalhou-se um momento quando reparou que se esquecera do garrote, foi à procura de algo que servisse, encontrou um lenço e enrolou-o ao braço, apertando bem. A veia foi fácil de descobrir. Injetou tudo.
Não ficou mais rico. Em vez disso, apanhou uma grande moca. É que a nota, logo antes de lhe ir parar às mãos, tinha sido usada por outro tipo qualquer para snifar uma valente dose de coca.

Editorial (Primeiro e, Provavelmente, Único)

por Jorge Candeias

Bem-vindos ao Infinitamente Improvável. Sentem-se, fiquem em pé, deitem-se no chão, façam o pino, estejam à vontade. Este espaço acolhe bem bizarrias, portanto não se acanhem em bizarrar por aí.

Não vos vou explicar o que é o Infinitamente Improvável; há ali em cima uma página especificamente para isso, chamada "Sobre". Podem, e devem, escarafunchar por lá. E também podem, e devem, escarafunchar nas outras páginas ao lado. Encarem essas páginas, e outras que eventualmente se lhes venham a juntar, como uma espécie de editoriais permanentes, no que os editoriais costumam ter de explanação de propósitos e intenções. Este editorialzinho destina-se apenas a inaugurar o II, a dar-vos as boas-vindas, a atirar ao vento um par de porquês e a dizer o que se vai seguir no imediato.