segunda-feira, 13 de maio de 2013

A Fome das Ratazanas

por Jorge Candeias



NA: Este conto foi inspirado pelo conto A Crise das Ratazanas, de Miguel Hernâni Guimarães.

O ministro abriu a boca e dela saíram ratazanas. Eram cinco, muito pretas, escanzeladas, pelo e osso atrás de uns olhinhos a brilhar de calculismo. Distribuíram-se pela mesa, em formação quase militar, cobrindo todos os ângulos, e depois imobilizaram-se. Os focinhos rosados é que não paravam quietos, esforçando-se por captar só as ratazanas saberiam dizer o quê.
O ministro ficou assarapantado, sem reação, a olhar as ratazanas, de boca fechada mas com os olhos muito esbugalhados. À volta, murmurava-se. Alguns risinhos escapuliam-se de bocas subitamente nervosas. Fotógrafos disparavam flashes, chelique, chelique, chelique. O professor, o médico, o enfermeiro e o polícia que tinham sido arrebanhados à força pelo ministério para mostrar à imprensa como os cortes orçamentais estavam a ser bem recebidos pelas respetivas classes entreolharam-se. Alguém sorriu, hesitantemente. Alguém encolheu um ombro discreto. Secretários de estado e assessores acorreram ao ministro, solícitos, o senhor doutor está bem? o senhor doutor quer um pouco de água? o senhor doutor quer que eu vá chamar alguém para matar estes bichos horr…, e aqui o solícito calou-se, atrapalhado, lembrando-se de que os bichos horríveis tinham acabado de sair de dentro do senhor doutor. Este a tudo respondia com a cabeça, que sim, que não, que não. Pusera-se em pé, sem saber bem porquê. A boca sabia-lhe a défice público e sentia-a cheia de pelos. Sorriu, tentando agradecer. Mas não resultou; a solicitude dos subordinados era assoberbante e ia ter mesmo de agradecer oralmente. Inspirou pelo nariz. Acalmou-se. Voltou a sorrir. E depois…
… abriu a boca e dela saíram ratazanas.
Desta vez foram quatro, iguaizinhas às anteriores. Não se distribuíram pela mesa porque já não era para lá que o ministro estava virado. Uma saltou para o chão, soltando um guincho de intrepidez e espatinhando como quem se vê de repente em queda livre. Outra fincou bem as garras no lábio superior do ministro e depois trepou-lhe pelo nariz acima até se lhe ir empoleirar no cocuruto da cabeça, durante uns segundos, deixando atrás de si um rasto de pequenas feridas de onde escorreram gotas redondas de sangue vermelho escuro. A terceira deu um salto para o ombro esquerdo do ministro e depois desceu-lhe pelo braço, pulando em seguida para a mesa. Mas foi a quarta que deu início ao pior da confusão, pois voou para cima de uma secretária, velha matrona grisalha de amplo seio e igualmente amplo decote, enfiando-se-lhe entre as fartas carnes e levando a pobre mulher a desatar a fugir pela sala, numa gritaria histérica, enquanto com uma mão se descabelava e com a outra se ia livrando como podia do saia-casaco de onde normalmente transbordava.
Foi o pandemónio.
Fotógrafos e cameramen precipitaram-se de um lado para o outro, de máquinas e câmaras em punho, procurando profissionalissmamente captar o máximo possível do acontecimento a fim de informar a nação e registar o insólito dos factos para a posteridade. Outros repórteres espreitavam o melhor que a confusão lhes permitia, procurando estorvar os colegas o mínimo absolutamente indispensável. Houve quem saísse da sala de fininho, houve quem dela saísse aos gritos de chamem os bombeiros, chamem a polícia, chamem a Dona Alice, esquecendo-se de que a Dona Alice estava ali mesmo, a correr e a despir-se aos guinchos, e vários membros das forças de segurança se encontravam de serviço na sala, já para não falar do pobre guarda que fora obrigado, sob ameaça de processo disciplinar, a passar o dia de folga sorridente e contente, por mais morto e decomposto que se sentisse por dentro.
E se bem corriam os humanos, melhor corriam as ratazanas, e aqui a palavra melhor é usada da forma que lhe é mais própria, pois não só são bichos melhor adaptados à corrida do que os desajeitados bípedes que somos, como correram de forma bem mais disciplinada, dir-se-ia mesmo quase militar, mantendo sempre o controlo tático de um determinado setor da sala que rodeava a mesa onde as primeiras tinham caído. Até aquela que se enfiara entre as mamas da secretária, certamente por acaso, pois até nas operações mais bem organizadas há imprevistos, acabou por de lá saltar à primeira oportunidade, indo juntar-se às companheiras, o que não impediu a mulher de continuar a despir-se até ficar completamente nua, sentada no chão a um canto, enrolada sobre si própria numa bola defensiva de covinhas celulíticas, olhando em redor com olhos chorosos, de onde o pânico saltava como pipocas.
Entretanto, o ministro despenteava-se em movimentos bruscos, agarrado ao estômago com a mão esquerda, tapando a boca com a direita. Já poucos eram os que dele tentavam aproximar-se, até porque não obtinham mais resposta do que um aceno vago ou um olhar esgazeado. Parecia pouco menos que milagre que se mantivesse em pé, tamanhas eram as convulsões que o assolavam. Era claro que procurava dominar-se, o que aos poucos até pareceu ir conseguindo fazer. O mesmo, aliás, se passava na sala, apesar de, ao fundo, perto da porta, os jornalistas televisivos e radiofónicos falarem para microfones em murmúrios mais ou menos histriónicos, numa cacofonia de diretos entrecruzados. Os representantes das categorias profissionais tinham-se também levantado, mas a hesitação prendeu-os ao lugar e acabaram por voltar a sentar-se. O mesmo fez o único secretário de estado que não se tinha raspado dali para fora assim que a Dona Alice soltara o primeiro guincho. E entre os assessores, gente leal por dever profissional, houve até dois ou três que regressaram à sala. Um destes dirigiu-se à mesa, um pouco a medo visto esta continuar sob o controlo das ratazanas que por ela se distribuíam regularmente, controlando todas as abordagens sem no entanto revelarem evidentes sinais de agressividade. Mostravam mais uma espécie de expetativa avaliadora, com os olhinhos inteligentes a brilhar de atenção, a dentuça à mostra e os focinhos num frenesim de tremeliques. Mantendo-se o mais afastado possível dos bichos, o assessor recuperou o microfone, após o que recuou para distância segura. Em seguida, chamou a atenção dos presentes com pancadinhas surdas no micro e, quando as caras se voltaram para si, começou a dizer que a conferência de imprensa teria de ser adiada, por motivos de força maior, se as distintas damas e cavalheiros quisessem fazer a bondade de sair marcar-se-ia, mas nesse momento viu-se abruptamente interrompido a meio da frase que por fidelidade aos factos deixámos a meio por um grunhido quase animalesco soltado mesmo atrás das suas costas. Pelo ministro.
Sobressaltado, com um arrepio a percorrer-lhe o braço direito deixando atrás de si uma mata de cabelinhos em pé (era peludo, o homem) e precipitando-se depois a grande velocidade pela espinha abaixo, o assessor girou sobre si próprio. O ministro abanava a cabeça num não mudo, erguendo uma mão com a palma virada para a frente, assim como quem diz aguenta aí os cavalinhos, rapazote, que isto vai ao lugar. Um fugacíssimo sorrisinho tremeluziu-lhe nos lábios enquanto ele avançava, tirava o microfone da mão trémula do assessor, ao mesmo tempo que passava a outra mão pelo cabelo desalinhado, tentando pô-lo no lugar. Imitando o subordinado, atacou o microfone com rápidas pancadinhas que reverberaram, surdas, na instalação sonora, pum pum pum, esperou que os jornalistas se calassem e os fotógrafos se cansassem de disparar flashadas, e depois abriu a boca para falar…
… e dela saíram ratazanas.
Melhor dizendo: dela jorraram ratazanas.
Foi desta vez um fluxo contínuo, aparentemente interminável, todas iguais, pretas, escanzeladas, de olhinhos míopes a reluzir de malícia e fome, uma atrás de outra atrás de outra atrás de outra atrás de outra atrás de outra, uma maré negra e repugnantemente viva.
Agora não houve cá pandemónios. Foi mesmo o pânico.
Soaram guinchos numa estridência de capoeira, derrubaram-se cadeiras, atiraram-se cadeiras, brandiram-se cadeiras, caiu-se. Houve quem fosse espezinhado no meio da debandada, houve quem espezinhasse sem disso sequer se dar conta. Houve quem conseguisse sair e continuasse a correr palácio fora até se ver na rua, bem longe, ofegante, mirado com uma curiosidade divertida por transeuntes que, apesar de toda a cobertura mediática, nenhuma ideia faziam do acontecido e se sentiam indecisos sobre se aquelas correrias desarvoradas seriam alguma espécie de acontecimento artístico ou casos individuais de destrambelhamento. Mas também houve quem não tivesse conseguido sair, pois a páginas tantas alguém decidiu trancar a porta da sala, talvez julgando que se não o fizesse em breve teria uma enchente de ratazanas a ocupar por completo o palácio, quiçá a capital. Os retardatários — todos os fotógrafos, alguns dos cameramen, meia dúzia de outros jornalistas, a Dona Alice, ainda nua, e os quatro pobres representantes das classes profissionais, além do ministro, muito embora este mal contasse para tais contas pois entretanto estatelara-se no chão e ia-se sumindo a olhos vistos sob uma irrequieta camada de corpos negros — os retardatários aglomeraram-se junto da porta, batendo-lhe, tentando arrombá-la, lançando lancinantes gritos de súplica, pedindo ajuda, que alguém abrisse a porta, que os deixassem sair, que os tirassem dali, socorro, socorro, tudo pontuado por um ou outro palavrão indignado e raivoso, atirado ao grandecíssimo filho da vaca prenha de javali que os prendera ali dentro. Mas tudo em vão. A porta era resistente e do lado de fora só havia ou cumplicidades ou orelhas moucas.
Tal era a barulheira que ninguém se deu conta de uma rápida série de guinchos, seguida por uns ruídos gorgolejantes e um baque. Tampouco houve alguém que notasse que as ratazanas se espalhavam pelo outro lado da sala, investigando o que lá poderia haver, como que assumindo o controlo do território, ganhando posições, recuando depois quando verificavam que o grau de ameaça oriundo dessas posições recém-conquistadas era nulo, que o território estava seguro. Então, iam juntar-se a uma espécie de fileira, ou de frente, que se formava de ponta a ponta da sala, a qual engrossava a olhos vistos ao mesmo tempo que ia avançando devagarinho, com toda a prudência mas também com uma inabalável firmeza. Despercebida também passara a enorme ratazana que avançava ao centro, logo atrás das demais, guinchando-lhes com o ar autoritário de um general em campanha, como quem distribui ordens. Insolitamente, trazia atada em volta do pescoço afilado a gravata às riscas que o ministro envergara pouco antes. Foi pena que ninguém reparasse logo nessa bizarria, pois caso o tivesse feito seria possível que tivesse prolongado o olhar mais para trás, para a zona da mesa, agora vazia de ratazanas, onde do ministro restava apenas a roupa — menos a gravata, como é óbvio — oca e ensanguentada, esparramada pelo chão como um saco vazio, e talvez, só talvez, tivesse somado dois e dois e alertado os companheiros antes de ser inapelavelmente tarde demais. Mas ninguém reparou em nada. Quando as turbas enlouquecem, perdem até a capacidade para a mais elementar das vigilâncias.
Por conseguinte, foi só com a primeira dentada numa canela que alguém se virou para trás com um grito de dor e reparou que o pequeno grupo de pessoas estava cercado por ratazanas. Completamente cercado por ratazanas. Estas eram agora bem mais que uma centena, todas iguais à exceção da da gravata, com os mesmos olhinhos míopes, o mesmo ar escanzelado, os mesmos focinhos hiperativos, o mesmo pelo negro de azeviche. A da gravata, pelo contrário, era rechonchuda e seis ou sete vezes maior que as restantes. Aquele movimento súbito provocado pela dentada, provavelmente dada a destempo, por algum subordinado insubordinado, levara-a a soltar três guinchos em rápida sucessão e de imediato todas as ratazanas pararam e empoleiraram-se nas patas traseiras, talvez imitando a postura humana, talvez simplesmente preparadas para saltar à primeira provocação. Ao ver aquela cena, o mordido esbugalhou muito os olhos e deu uma cotovelada ao vizinho do lado, que também se virou, esbugalhou os olhos e passou a cotovelada adiante e por aí fora. À palmada, à cotovelada e em silêncio, um alerta esbugalhado de assombro espalhou-se pelas pessoas como fogo em pólvora. Mas sem fazer fumo.
Ficaram assim frente a frente alguns segundos, homens e ratos, dois exércitos desarmados numa tensa expetativa de duelo. Poder-se-á pôr isto na conta das alucinações geradas pelo pânico, mas naquele momento mais do que uma daquelas pessoas poderia jurar que a ratazana gigante, para a qual confluíam todos os olhares, ia franzindo o cenho com toda a maldade do mundo, ia entreabrindo a boca num arreganho de escárnio. As patorras da frente juntaram-se e contorceram-se no eterno gesto dos supervilões de desenho animado. Alguém deve ter certamente engolido em seco, vários terão sido os que olharam em volta em busca de uma qualquer arma, de qualquer coisa que pudessem usar para se defenderem, ou para atacarem, de qualquer objeto para cima do qual conseguissem trepar, pondo-se assim um pouco mais fora do alcance daqueles dentes amarelados que pareciam reluzir por contraste com a massa de pelo negro. Um dos homens desafivelou o cinto e começou lentamente a tirá-lo, em gestos lentos e bem pensados; outros dois repararam nele e seguiram-lhe o exemplo. Outro também começou a fazê-lo mas, quando teve de agarrar in extremis as calças que lhe tentavam escorregar pernas abaixo depressa pensou melhor e voltou a afivelar o cinto, engolindo em seco e amaldiçoando mentalmente o bolo que comera na véspera, como se fosse este o único responsável por toda aquela pança. O polícia, em farda de cerimónia, levou a mão a um coldre vazio, pois ordens superiores (reforçadas por uma revista antes de entrar) tinham-no obrigado a vir desarmado. Após encomendar a criatura que tomara tal decisão à porca arraçada de toupeira que a dera à luz, tirou também o cinto cuja pesada fivela brilhou à luz do lustre com um ar perigoso. A única mulher que ainda se mantinha integralmente vestida — a outra era a Dona Alice, que entretanto se acalmara o suficiente para amarrar à cintura a camisa que despira, usando-a como uma espécie de saia — descalçou-se, pensando usar os saltos de agulha como punhais de treze centímetros. E as ratazanas…
… as ratazanas, cento e muitas, ao ver que os oponentes se armavam, ao vê-los a mexer-se, simplesmente ao vê-los, arreganharam também as beiças em cento e muitos esgares. Mas, enquanto na maior o arreganho parecia feito de escárnio e de uma maldade em estado puro, mas restantes tinha apenas um motor.
A fome.
Uma fome imensa, uma fome eterna, uma fome que as roía por dentro numa acidez de suco gástrico impotente. Uma fome que reluzia em cada um daqueles trezentos e tal olhinhos, que fremia em todos os cento e muitos focinhos irrequietos. Uma fome que quase se sentia como coisa sólida, que quase se conseguia apalpar, uma fome tão faminta que ela própria tinha fome.
Foi então, nesse ponto alto de tensão e expetativa, que um dos fotógrafos decidiu tirar uma fotografia. Não se sabe ao certo o que lhe passou pela cabeça, qual o raciocínio, por que motivo teria achado a ideia boa mas, conhecendo fotógrafos, fácil se torna adivinhá-lo. Há na raça uma estranha pulsão pelo clic, que se expressa nas situações mais estrambólicas. Portanto afastou-se um pouco dos demais, agachou-se, procurando um ângulo que apanhasse tanto o mar de ratazanas como dois ou três dos resistentes, selecionou um preto-e-branco dramático, de alto contraste, virou o flash para cima a fim de evitar a luz direta e ajustou o cartãozinho preso por elásticos que fazia as vezes de refletor.
Disparou.
A foto acabaria por se tornar icónica.
Mas foi como se um encanto qualquer se tivesse quebrado.
A ratazana gigante chiou uma ordem. E imediatamente quase duzentas ratazanas saltaram sobre o punhado de humanos, esgatanhando e mordendo, enquanto os homens ripostavam com cintadas, com murros, com pisadelas, com apertos, com torções de pescoços peludos, com pancadas desferidas por preciosas máquinas fotográficas e de vídeo, com estocadas de salto de sapato, até também com dentadas. Sangue começou a manchar o chão, a porta, a parede, dentes e dedos, ratazanas e humanos. O primeiro cadáver mutilado de ratazana caiu no chão, logo seguido pelo segundo, pelo terceiro e por mais, e mais, mas não demorou até se lhes irem juntar corpos de gente viva, gente que tropeçava, que escorregava, que entontecia, avaliava mal os ímpetos e perdia o equilíbrio, gente que se estatelava e que depressa ficava sem olhos, logo após sem dedos, sem cara, sem língua assim que escancarava a boca em gritos que ressoavam cristalinos nos cristais do lustre, e finalmente sem vida quando uma ratazana lhe descia goela abaixo e aí se entocava, retesando-se, aumentando ao máximo o volume do corpo e cortando o fluxo de ar até a vítima deixar de estrebuchar.
Assim caíram, um após outro, numa orgia de sangue e horror, todos aqueles que tinham ficado fechados na sala. Mesmo o polícia, que era um homem competente e razoavelmente bem treinado e por isso conseguiu resistir até ao fim, ainda que não de uma forma inteiramente digna. Apesar de ter sido responsável pela morte de umas duas dezenas de ratazanas, acabou acossado e em fuga. Em desespero, vendo cair o seu último companheiro e reparando que a sua queda abrira uma brecha na muralha de ratazanas que os cercava, deu um salto inesperado e desatou a fugir sala fora, perseguido pelo grosso das ratazanas. Se alguém o tivesse visto nesse momento teria provavelmente pensado num navio a navegar a toda a velocidade por num mar de sangue, pois poucas eram já as zonas de soalho que se mantinham limpas, arrastando atrás de si uma longa esteira preta. Fugiu o mais depressa que foi capaz, sem sequer pensar, deixando-se simplesmente levar pelo intemporal instinto da presa, tirando da frente cadeiras ao pontapé, subindo para cima da mesa e logo de lá pulando pois depressa compreendeu que de nada servia aquele indignificante alpinismo, que as ratazanas o alcançavam com toda a facilidade. E desatou outra vez a fugir, fazendo fintas, escorregando, caindo, levantando-se não sem antes receber várias dentadas, voltando a correr, e indo-se a pouco e pouco cansando, perdendo as forças e a ligeireza, bem como sangue, muito sangue, muito, muito sangue. Apesar de tudo, acabou por ter um fim menos desagradável que muitos outros, pois após mais uma escorregadela numa mancha de sangue ainda líquido estatelou-se e deu uma violentíssima cabeçada na aresta duma cadeira. Perdeu os sentidos no mesmo instante em que um sonoro crac ressoava pela sala, e nem deu por ir desta para outra qualquer.
Quando este derradeiro episódio do morticínio teve o seu desfecho, o frenesi das ratazanas ainda se prolongou por alguns minutos, correrias excitadas de corpo em corpo, farejadelas e dentadas experimentais a fim de aferir da condição de cada um, de ver se ainda havia quem se mexesse ou se estava mesmo tudo bem morto e acabado e pronto a passar à fase seguinte de inexistência, a de matéria-prima. Cada confirmação de morte era comemorada com uma ensurdecedora chiadeira de entusiasmo e, sim, mesmo de júbilo. Era um tal êxtase de vitória, era uma tal fome que muitas das ratazanas começavam já a saciar arrancando grandes nacos tanto aos homens como às suas próprias camaradas caídas, que a dificuldade que a gigantesca ratazana da gravata teve para lograr impor-se e voltar a incutir nas restantes alguma disciplina foi grande. Mas acabou por conseguir, como talvez fosse inevitável. Então, pôs-se em pé sobre as patas traseiras, soltou um guincho grave, apontando a pata dianteira esquerda para um grupo de ratazanas mortas, e outro, mais agudo, apontando a direita para um dos cantos da sala. As outras atiraram-se obedientemente ao trabalho e depressa as baixas da batalha (se restasse alguém para contá-las chegaria ao total de setenta e três) ficaram alinhadas junto da parede, em fileiras que dir-se-iam cerimoniais, com os corpos esticados na medida em que as deformações da morte o permitiam. Então, a ratazana da gravata voltou a erguer-se sobre as patas traseiras e arrancou numa longa sessão de guinchos, cheia de gestos, de mudanças de tom e de volume. Dir-se-ia um discurso, e daqueles bem servidos por uma oratória inspirada. As restantes ratazanas escutavam, obedientes, apesar de não conseguirem evitar virar as cabeças pontiagudas para os cadáveres, apesar de não serem capazes de impedir as bocas de salivar abundantemente com o apetitosíssimo odor a sangue e tripas soltas que lhes chegava aos focinhos que pareciam animados de vida própria, nem de calar os rugidos furibundos que os seus pequenos estômagos soltavam, apesar de os combaterem como podiam. E iam ouvindo aquela arenga sem entender um guincho que fosse, enquanto os seus pouco sofisticados cérebros se interrogavam vagamente sobre quando se calaria aquele palerma e por que raio manteria aquela porcaria ridícula pendurada do pescoço.
Este, o palerma, alheado de tudo o que não contribuísse para o imenso gozo que estava a ter, arengava. Gostara de ser ministro e ganhara gosto às manifestações cerimoniais do cargo. Apreciava aquele cerimonial, a exibição ostensiva de autoridade, e não lhe tinham escapado os olhares de fome e cobiça que as restantes lançavam aos cadáveres. Por isso mesmo demorou-se um pouco mais, deliciando-se com redundâncias, voltando atrás, ziguezagueando, guinchando em círculos, produzindo muito ruído basicamente sem dizer nada. Guinchos de circunstância, uma chiadeira oca mas demorada, vazia de qualquer espécie de significado mas eloquente. O seu sadismo inato divertia-se com isso, e com a impaciência das demais, com a fome das demais, com o modo como os focinhos das demais eram incapazes de resistir aos cheiros apetitosos que enchiam a sala, torturando-as numa tortura lenta e em grande medida autoinfligida.
Mas até os grandes generais têm um calcanhar de Aquiles qualquer e o seu era o estômago. Também ele começava a protestar por estar a ser tão vilmente ignorado, ameaçando arruinar a solenidade do momento com ruídos indecorosos. Por conseguinte, a maioral das ratazanas concluiu apressadamente a intervenção e em seguida avançou por entre as outras, com uma imponência majestática, até ao cadáver que lhe parecera mais suculento. Aí, parou, gozando o momento. Atrás de si, as sobreviventes do seu exército tremiam de impaciência, esperando o sinal. Que finalmente chegou.
Lançaram-se as ratazanas sobre os cadáveres dos homens numa chiadeira de crianças no recreio, atirou-se a da gravata àquele que reservara para si numa sofreguidão de comedor desportivo, e depressa sobre a sala caiu uma espécie de silêncio, interrompido apenas pelo ruído da mastigação e por um ou outro guincho de protesto quando duas ratazanas entravam em competição por algum naco, guinchos esses que no entanto depressa se silenciavam dada a abundância de alimento, daquela estranha espécie de maná celestial.
E a gigante, a que fora ministro, devorava sozinha um tipo qualquer de bigode que uma parte do seu pequeno cérebro reconhecia vagamente, arrancando-lhe grandes nacos da fofa carne das nádegas, roendo-os enquanto os ia girando entre as patas da frente, soltando minúsculos arrotos no limiar agudo da audição humana. Depois fazia uma breve pausa e olhava em volta, embevecida, após o que lambia as patas, limpava os bigodes e voltava a atirar-se à presa, de alma, estômago e coração.
E de vez em quando passava-lhe pela cabeça satisfeita que esta coisa da austeridade tinha sido a melhor invenção de todos os tempos e mais alguns.

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