sexta-feira, 17 de maio de 2013

A Truta

por José Eduardo Lopes






Estamos no pequeno jardim da casa entretidos com a minúscula horta quando somos saudados por um vizinho com as fuças encaixadas nas ripas da vedação de madeira. Como estão? Dia bonito de sol, não é? Temos de aproveitar o bom tempo!, e outras banalidades de semelhante calibre. Eu e a minha patroa suspeitamos do motivo dessa simpatia. O vizinho — como todos os vizinhos, aliás — já foi visitar a truta violácea que mora ao fim da rua — todos menos nós — e aquela paragem diante da nossa casa não tem outro propósito senão o de nos fazer lembrar a nossa cruenta desumanidade. A truta violácea está doente, a truta violácea está com pena dela mesma e sofre de melancolia, a truta violácea até sonha acordada com regatos de águas cristalinas e lagos de montanha. Fica o dia todo deitada numa cadeira de espaldar no terraço para poder contemplar o rio escuro que corre junto à casa e lambe com as suas águas os pilares do cais envelhecido da arruinada fábrica de conservas. Está deitada sob o céu ao abrigo dum chapéu de sol, e lastima-se, e arfa com aflição como um peixe fora de água.
O vizinho desiste de aguilhoar as nossas consciências e vai à vida. Eu e a minha patroa sentimo-nos desanimados e largamos a horta. Lavajamos as mãos na banheira de pássaros do jardim e eu formulo a pergunta que se impõe aos nossos espíritos.
— Temos de lá ir, não é?
A patroa acena que sim, e damos um pulo à cozinha para ir buscar o sal e a faca para eviscerar a truta violácea.

Sem comentários:

Enviar um comentário