terça-feira, 9 de julho de 2013

Uma História Geométrica em Duas Partes

por Saul Matos Martins




N. A. - Esta história dá sequência a Uma Notícia Geométrica, de João Ventura

Primeiro, a surra. Depois, uma operação em delírio que o deixou mutilado. Depois, a perda do emprego
lamento imenso meu caro mas como compreenderá a firma não pode manter nos seus quadros alguém como o senhor
a que dera anos de vida. Logo a seguir, a mulher — linda quadrada quase perfeita, sempre adornada com levíssimos arrebiques nos vértices — que saiu porta fora levando consigo os pequenos, todos os pequenos, até o triste retangulozinho que era o mais novo e de quem ela nunca gostara precisamente por ser retângulo,
não posso Alfredo não posso mesmo desculpa vou para casa da minha mãe é a vergonha de estares transformado nisso com que cara encaro as amigas, não posso
sacudindo as arestas em solavancos de choro seco. Antes, durante e depois da separação, meses de procura infrutífera por outro emprego
com esta economia está difícil para todos o senhor não é o que procuramos já tentou a agricultura? veja bem que tinha uma vaga ideal para si mas foi preenchida anteontem é azar não nem pensar nisso volte a tentar daqui por uns meses talvez haja alguma coisa mas não tenha muita esperança obrigado
e por fim perdeu a casa
tem duas semanas para sair.
Foi quando se viu na rua, arrastando atrás de si um polígono irregular de vinte lados com todos os seus (já magros) pertences lá dentro que finalmente se irritou a sério.
Soltou um grito uma praga um apelo do fundo da alma. À volta, os triângulos e quadriláteros que habitavam aquela zona fina da cidade, todos regularíssimos, olharam-no de soslaio, uns horrorizados, outros apressados. Ouviu fragmentos de conversas
vagabundos que horror metem-se nos copos e não te aproximes Adolfinho que deve ter bichos deviam enfiar esta gente na cadeia pessoas de bem terão de aguentar intolerável
que só lhe aumentaram mais a irritação o desespero o ressentimento a fúria. Fechou-se em si próprio, projetando os vértices o mais que pôde contra os outros e partiu cidade fora, em busca de algum lugar onde dormir.
Logo ele que sempre estivera bem consigo e com os outros, com as coisas como as coisas eram, com a geométrica sociedade de castas, em cima a supercasta dos regulares, em baixo a dos irregulares, em cima os triângulos e depois os quadriláteros e pentágonos e por aí abaixo, tudo bem organizado, hierarquia perfeita. Tudo regular.
Logo ele.
Sumiu-se nas ruas mais pobres da cidade fundiu-se com elas perdeu-se nas pequenas e grandes irregularidades que a passagem do tempo e o desgaste provocam nos lugares desleixados. Nunca mais foi visto por ninguém que o conhecesse.
Passou o tempo continuou a vida.
Um belo dia uma estranha escultura amanheceu numa das praças principais da zona rica. Ninguém sabia como lá fora parar, desconhecia-se o artista, quem o contratara, de onde tinham vindo os fundos para tamanha beleza. Perfeição. O círculo, a mais regular de todas as formas regulares, constituía a geometria básica da estrutura. Dentro desse círculo grande, outros mais pequenos moviam-se de um lado para o outro, uma miríade deles, a princípio devagar, aparentemente desorganizados, depois, quando os movimentos ganharam uma ordem percetível, mais depressa e mais depressa ainda. Era um espetáculo assombroso uma instalação nunca vista imperdível. Depressa se juntou uma multidão de triângulos equiláteros, quadrados, pentágonos e quantidades mais pequenas de membros de outras castas, boatando entre si em cochichos cruzados cheios de dúvidas displicentes e certezas impossíveis
disse-me a minha prima que é do escultor Aníbal mas não estava reformado? dizia-se que sim mas são só círculos ou há mais alguma coisa, consegues ver? milhões, isto custou milhões, estou-te a dizer que o gabinete ah, mas serão mesmo círculos? parece-me ver ali uns verticezinhos escondidos sei de fonte segura que isto é coisa da presidência para comemorar o aquilo não estará a girar com velocidade a mais? pretende levar-nos a refletir sobre a natureza do ser, obviamente, não se está mesmo a ver? assombroso, assombroso amoor, vem cá que eu
mergulhada no espanto e na insistente sensação de que algo se preparava, de que aquela estátua aquele monumento aquela obra de arte seria não mais que prólogo para qualquer outra coisa. E ninguém arredava pé, enquanto de todas as ruas que iam dar à praça iam chegando mais e mais membros das castas superiores, relegando os das inferiores que já lá se encontravam cada vez para mais longe à força de vertiçadas e empurrões aos quais estes últimos não ousavam responder pois se o fizessem colidiriam com todas as leis nunca escritas da sua sociedade hierarquizada, na qual nenhuma qualidade é mais apreciada do que a aquiescência.
Passou-se uma hora e a multidão engrossou até transbordar da praça passaram-se duas e a multidão compactou-se até cada forma geométrica se encostar às vizinhas como se de um puzzle se tratasse.
E foi então que um zumbido começou a soar vindo de dentro do círculo grande. Os pequenos eram por essa altura uma mancha contínua levemente azulada de tal forma rápido era o seu movimento. A multidão burburinhou levemente inquieta aqui e ali um vértice espetou-se um pouco, acolá uma que outra aresta estremeceu contra as vizinhas. Mas não houve tempo para mais. Houve apenas tempo para suster milhares de respirações geométricas no mesmo instante em que a praça era sacudida por uma explosão nunca vista na cidade.
E os círculos pequenos, de súbito livres do confinamento do grande, dispararam em linha reta em todas as direções estilhaçando vértices cortando arestas esfrangalhando a regularidade de todos aqueles polígonos importantes, exceção feita a um punhado de sortudos que lograram escapar entre os pingos dessa chuva centrípeta.
Soaram gritos pragas apelos do fundo da alma. A praça encheu-se de equipas de emergência num caos que em qualquer outra situação seria intolerável. Mas as ondas de choque do acontecido rapidamente extravasaram a praça, o bairro, até a cidade. Toda a sociedade foi sacudida de cima a baixo e todas as conversas
soubeste o que aconteceu na praça uma estátua ou lá o que era bum que horror milhares de vítimas tudo de casta elevada só gente fina quando a Ana me contou não acreditei parece mentira realmente sabes que mais é bem feita mas foi um acidente não foi diz que sim
se circunscreveram durante muito muito tempo àquele acontecimento extraordinário. Tentando entender. Tentando tirar do choque algum sentido. Tentando reconfigurar-se mentalmente, adaptar-se a um mundo onde de súbito era possível perder-se num piscar de olhos a regularidade e o estatuto que esta conferia, talvez para sempre
por melhor que o cirurgião seja, nunca se fica igual ao que se era coitados
mas com toda a certeza durante algum tempo, pelo menos.
As autoridades depressa avançaram com a tese de acidente, esquecendo o insólito e nunca explicado aparecimento do círculo naquela praça, e teriam insistido nela não fora uma lacónica mensagem difundida dias mais tarde por todos os meios
só o círculo é perfeito todos os polígonos são iguais na imperfeição
e assinada por uma até aí desconhecida Frente Circular de Libertação Poligonal. Mas foi o símbolo, um círculo em explosão, que não deixou dúvidas a ninguém. E se algum obtuso insistisse em inentender a mensagem ali oculta, a repetição do atentado meses mais tarde noutro local privilegiado da cidade dissipou todas as dúvidas, se bem que desta vez quase não tenha havido vítimas mais devido à renitência subitamente surgida entre as castas superiores em aproximar-se de formas inexplicadas do que propriamente por causa da intervenção das autoridades.
E o resto, como soi dizer-se, é história.
Quando ao que interliga as duas metades deste pequeno relato, leitor, eu que o conto sei bem o que é e tu que o leste com atenção também certamente saberás. Fiquemos assim.

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