sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Para Cada Verdade as suas Consequências

por Miguel Hernâni Guimarães


A noite é escura e cheia de terrores, pensa Mário. Depois sorri, um sorriso triste, lembrando-se do livro em que lera essa frase, e dos outros, de todos os seus velhos e amados livros, estantes deles, perdidos agora para sempre no incêndio de Lisboa. Este continua a lavrar, algures para norte, enchendo o céu noturno de fumo acre que de vez em quando é empurrado pelo vento para o nível das ruas, dificultando a respiração, mas já está demasiado distante para que se continue a ouvir o crepitar das chamas. Agora o que crepita são as armas automáticas que continuam a discutir à sua esquerda e à sua direita, nos labirintos arruinados de Alfama e do Bairro Alto, enquanto as tropas da União e a guerrilha da Frente Latina Revolucionária trocam derradeiros argumentos a três e quatro vezes a velocidade do som, sob a forma de chumbo revestido de aço. De vez em quando, uma violenta explosão sacode o solo sob os seus pés, como um relâmpago de pedra, e passados alguns segundos chega-lhe aos ouvidos um trovejar longínquo. Embora continue a passar por ali um drone ou outro, os bombardeamentos da NATO concentram-se agora mais a noroeste, para lá de Benfica. Contudo, se a sua eficácia for comparável à dos que destruíram os velhos bairros de Lisboa, a guerrilha pouco terá a temer. Bastar-lhe-á recolher-se, calar as armas, fundir-se com a população de onde brotou, esperar que o vendaval passe e rezar, se para aí estiver inclinada, por chegar viva ao dealbar dos dias calmos, e depois reatar a luta por entre os escombros.