terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O Canto do Cisne


por Jorge Candeias



No momento em que pela primeira vez o sinal lhe atingiu os recetores embutidos no bico, o cisne nadava placidamente no pequeno charco de água acastanhada que constituía boa parte do seu mundo desde que, tanto tempo antes, para ele abrira os olhos. Parou imediatamente de nadar, permitindo que a leve inércia do movimento o levasse pela água, rodeado de ondinhas, fazendo-se travar apenas pelo atrito de patas abertas, imóveis e viradas para o fundo. Inclinou a cabeça, como que surpreendido, mas depressa pareceu perder o interesse. Não seria o primeiro falso alarme a causar-lhe um sobressalto de antecipação, não seria a primeira vez que captaria um algo qualquer que não voltava a repetir-se. Por isso, limitou-se a alisar rapidamente com o bico as penas do pescoço, depois as do peito até quase à linha de água e, antes de recomeçar a propulsionar-se com as patas, ainda gastou uns segundos a aconchegar melhor as asas dobradas sobre o dorso.
Daquela vez, porém, não demorou muito a voltar a captar o sinal, e voltou a parar, na mesma imobilidade de espanto. Agora, além de inclinar a cabeça, esticou o pescoço e moveu-o de um lado para o outro, em movimentos a princípio amplos, depois cada vez mais tolhidos, mais concentrados num volume bem delimitado. Por fim, pareceu tomar uma decisão e dirigiu-se para um ponto específico da margem. O V de ondinhas que deixou atrás de si era firme, retilíneo. Um V vitorioso.
Chegado à margem, sacudiu-se com ganas, transformando-se numa alva nuvem de penas a pairar baixinho sobre a areia terrosa, fazendo chover nela uma cascata de finíssimas gotículas. Depois ficou numa imobilidade perfeita.
A margem, uma estreita extensão de areia suja com um pouco de terreno seco e mais elevado em volta, onde ia sobrevivendo a duras penas uma mancheia de arbustos raquíticos e ervas daninhas, era o resto do seu mundo. Conhecia-a como conhecia as penas que lhe cobriam o peito, que todos os dias alisava uma e outra e outra vez, uma a uma, meticulosamente, num ritual que se repetia monótono, sempre igual, de cima para baixo e da esquerda para a direita. Um homem talvez se tivesse interrogado sobre se seria dessa margem tão bem conhecida que o sinal provinha. O homem, como se sabe, é bicho dado a pensamentos indolentes, a vagas interrogações e curiosidades sem grande sentido, a fantasias. O cisne não. Aquele cisne não. O cisne não pensava, nunca pensava; reagia apenas. Geralmente a impulsos interiores que não entendia nem procurava entender. Por vezes, muito raramente, a algum acontecimento externo. Mas fosse o estímulo interno, fosse externo, a indiferença com que o cisne a ele respondia era idêntica — para nada lhe interessava de onde o sinal era oriundo, se da margem se de outro sítio qualquer. Captara-o, e por mais do que uma vez; isso lhe bastava.
Um homem, depois do vago ataque de curiosidade, decerto abanaria a cabeça, assaltado por uma igualmente vaga desilusão consigo próprio. É claro que o sinal não pode vir da margem, pensaria. Ela estava vazia.
Estava sempre vazia.
O cisne não desperdiçou tempo e energia com tais estados de alma. Aguardou, simplesmente.
Quando captou o sinal pela terceira vez já não inclinou a cabeça, embora voltasse a esticar o pescoço e a movê-lo de um lado para o outro. Os movimentos eram ainda mais curtos do que antes, mais concentrados num volume cada vez mais determinado. O bico transformara-se num ponteiro quase rígido, uma seta apontada à parede cinzenta e mais que um pouco corroída que enclausurava o seu pequeno mundo.
Foi para lá que se dirigiu em seguida, com a falta de graça que todos os cisnes mostram sempre que saem do seu elemento aquático, bamboleando-se nas patas curtas, equilibrando-se com asas entreabertas. Depressa, mas sem pressa. Seguindo a direito sempre que possível, quando impossível contornando com todo o rigor os obstáculos que se lhe apresentavam. Primeiro um arbusto de folhas avermelhadas, logo uma calota esbranquiçada com duas cavidades redondas de um dos lados e aquilo que parecia ser uma terceira por baixo, meio soterrada. Poderia ter esvoaçado por cima do arbusto, que de asas dispunha embora fosse raríssimo usá-las para a função que tais órgãos implicam… mas para quê tamanho esforço? Também poderia ter pisado a calota ou ter-lhe passado por cima com um saltinho de nada… mas não conseguiu. Nunca conseguira. A calota, e outras duas como ela que jaziam noutros pontos da margem, eram tabu. Inultrapassáveis.
Apesar de tudo, mesmo com os desvios, pouquíssimo tempo gastou no curto trajeto. Segundos depois estava parado em frente da parede. De novo hirto.
De novo à espera.
Ao captar o sinal pela quarta vez, sentou-se e de imediato esticou o pescoço para a frente. Ainda o fez oscilar um tudo-nadíssima, em movimentos tão minúsculos que a sua própria existência poderia ser alvo de dúvida, antes de o fixar numa posição rigorosa. Logo em seguida abriu as asas num semicírculo perfeito, uma espécie de crescente feito de rémiges e coberteiras brancas, e imobilizou-se por inteiro. Se algo ou alguém pudesse olhá-lo, perdoado ficaria se o julgasse estátua, mera pedra plumosa.
Então, abriu a boca.
Dela saiu qualquer coisa. Uma língua? Não, que língua de cisne não é coisa cilíndrica nem brilha com um brilho de metal bem oleado, nem ao sol claro, ao ar livre, nem à luz daquele mundo encerrado, uniforme e bizarra, como se viesse de todos os lados ao mesmo tempo, como se fosse emitida por coisa nenhuma, apagando todas as sombras, atenuando todos os contornos. Língua de cisne é coisa rosada e achatada na ponta, uma planária de músculo baço, muito diferente daquilo. E não cresce tanto, nunca cresce tanto, nem por sombras, nem de perto, hirta, reta e acinzentada, rigorosamente perpendicular ao crescente das asas. Por momentos parece que vai crescer para sempre, mas não, acaba por parar com um clic quase inaudível depois de atingir um comprimento que quase quadruplica o do bico.
E depois o movimento volta a parar com a brusquidão de um interruptor que se desliga. E uma vez mais a espera.
O sinal ainda lhe chegou mais seis vezes, sempre igual. A cada uma dessas vezes, o cisne fez um pequeníssimo ajuste da posição do corpo, baixando sempre o bico um pouco mais, inclinando as asas de forma correspondente, e voltando depois a imobilizar-se. Se alguém ali estivesse, e fosse competente o suficiente como observador, poderia traçar uma linha muito levemente curva entre os pontos para onde a língua que não era língua apontava na parede.
Mas ali não havia ninguém. O silêncio era total, à exceção do levíssimo rumor de fundo cuja permanência e regularidade o tornava inaudível. Nada chapinhava no charco, nada percorria as margens, nada remexia a areia ou roçava nos arbustos, fosse coisa sólida ou mera aragem. Nada sequer respirava. Nem o cisne.
À décima vez que o sinal chegou, veio a princípio idêntico a todas as outras, mas depressa mudou, tornando-se mais complexo, mais modulado, e muito, muito mais prolongado. O cisne captou-o com a indiferença sôfrega de uma máquina a desempenhar a única função para que foi concebida. Durante horas ali ficou, de língua que não era língua apontada para um ponto em lentíssimo movimento pela parede abaixo, as asas abertas, o pescoço esticado. Escutava sem escutar o desenrolar do sinal, as suas redundâncias, os códigos de verificação de integridade, as pausas e recomeços, as chaves de desencriptação, os algoritmos de desbloqueio.
Durante horas.
Mas tudo chega ao fim. E quando aquela espécie de língua metálica se recolheu na boca do cisne e este regressou à sua natureza avícola de todos os dias, como se nada de invulgar tivesse acontecido, fechando a boca, sacudindo a cabeça e as penas da cauda, fechando as asas e aconchegando-as sobre o dorso, dando dois ou três passos hesitantes e fazendo girar a cabeça como se olhasse em volta, como se estivesse a ressituar-se no mundo após um sono profundo, como quem pergunta a si próprio onde estou?, que é isto que me rodeia?, alguém que o olhasse, se alguém o olhasse, compreenderia que a longa sessão de escuta chegara ao fim.
Após aquela hesitação momentânea, o cisne regressou ao charco, atirou-se a água, pôs-se a nadar. Não com a ziguezagueante placidez de todos os dias, plena de calma e ócio, mas em linha reta, com um propósito. Dirigia-se a um ponto determinado da margem oposta, onde da areia se erguia uma superfície rochosa razoavelmente plana com uns dois metros de altura e cerca de dez de diâmetro. Os arbustos, aí, eram ainda mais rarefeitos que no resto daquele mundinho; só dois obstinados exemplares insistiam em tentar sobreviver agarrados às pedras, prolongando raízes sinuosas até à água, mal desabrochando, cada um deles, em meras dezenas de folhículas acastanhadas e espinhosas.
Foi esses arbustos que o cisne atacou com uma fúria totalmente inesperada. Agarrou-os com o bico, puxou, firmando-se em patas cujas membranas interdigitais eram esticadas por pedrinhas e irregularidades rochosas quase até ao ponto de rotura. Não teria sido necessária tanta sofreguidão: a rocha não era tão irregular que permitisse aos arbustos um apoio firme nem porosa e fendida o suficiente para que as raízes nela se ancorassem. E além disso, a água que alimentava as plantas só existia de um dos lados da plataforma rochosa e, ao atrair para si as raízes como se fosse íman e elas longos cordões de limalha de ferro, puxava-as para um dos lados das plantas, deixando-as sujeitas a um desequilíbrio intrínseco. Ao primeiro puxão, um dos arbustos tombou para o lado, ao segundo começou a rolar sobre si próprio, rochedo abaixo, depois curta praia adiante, indo parar apenas ao rés da água, despido de metade das folhas que até aí o haviam verdecido. O outro foi atacado com igual furor, embora agora o espezinhamento tivesse substituído os puxões. O resultado, contudo, foi igualmente devastador: a planta não demorou a ficar reduzida a gravetos dolorosamente fendidos e rentes ao chão, derramando neste lentas gotas de uma seiva espessa que se ia misturar com algum sangue vermelho escuro exsudado por pequenos cortes que o cisne, naquela excitação incaracterística, fizera nas patas sem mostrar sinal de dor ou sequer de incómodo.
Concluído o trabalho de destruição e limpeza, a ave parou no preciso centro da plataforma, sentando-se na areia, terra solta e pedrinhas que a cobriam com o cuidado de ave chocadeira em cima de ovos frágeis como gelo fino. Ali ficou algum tempo, como que a ganhar fôlego, intercalando períodos de total imobilidade com outros dedicados a alisar as penas com movimentos nervosos do bico.
Depois, sem que nada parecesse tê-lo levado a tal, levantou-se. Esticou o pescoço, erguendo o bico para a cúpula que fazia as vezes de céu naquele mundo confinado, abriu as asas, entortando-as em ângulos bizarros e quase as encostando ao pescoço, recolheu uma pata sob as penas da barriga e nessa pose voltou a imobilizar-se durante alguns minutos. Se alguém o visse assim imóvel, de tão longe que não reparasse na brancura suja das penas que o cobriam, perdoado facilmente seria por às primeiras o julgar mero exemplar de alguma espécie bizarra de planta, provavelmente herbácea, com um longo caule interrompido por um bolbo, coroado por uma espiga e rodeado por duas folhas largas. Mas a ilusão depressa se teria desfeito pois o cisne fez algo que, na vasta história de todos os mundos, não há notícia de alguma planta ter feito.
Começou a cantar.
Não o canto roufenho e repetitivo que se esperaria de um cisne, muito menos o suave frufru de uma planta ao vento. Um canto articulado, musical apesar de rouco, que se atomizava em algo que semelhava palavras, subindo e descendo pela escala cromática com uma regularidade rigorosamente melódica.
E enquanto cantava, o cisne começou também a dançar, em movimentos lentos mas estranhamente precisos, usando as asas e o pescoço como contrapesos, instrumentos de equilíbrio, desenhando com as patas, no chão, padrões intrincados, autênticos desenhos, que depois apagava numa fúria de pateadas e adejar de asas, só para recomeçar de novo, um desenho diferente, sempre acompanhado por uma melodia levemente distinta.
Assim continuou, durante minutos, durante horas, sem um esmorecimento, sem mostrar sinais de fadiga, com uma obstinação que, à falta de outro termo, se poderia descrever como… robótica?
Se alguém ali estivesse, alguém sagaz o suficiente, alguém dotado dos conhecimentos necessários para descodificar o insólito ocorrido, teria talvez começado por reparar nos padrões que o cisne desenhou naquela plataforma, talvez reconhecendo-os de forma vaga mas provavelmente sem conseguir localizá-los no onde, no quando e no como. Depois, com sorte, algo no seu cérebro talvez se encaixasse e as formas vagas ganhariam então consistência. Ah! Sim! Estranhos animais, figuras deformadas de mulheres, estranhíssimas plantas nunca vistas em nenhum dos mundos conhecidos, diagramas, representações aparentemente abstratas… e tudo acompanhado a canto, um canto que a princípio pareceria de certa forma dissonante mas aos poucos se iria revestindo de uma invulgar harmonia, não só por ser uno com a dança, mas pelas suas próprias características, como se também ele contivesse padrões e ritmos ocultos sob uma complexidade que à superfície poderia parecer quase caótica.
Se alguém ali estivesse e se desse a quase infinita improbabilidade de possuir a perspicácia de um génio e um particular gosto por antiquíssimos mistérios, poderia abrir a boca de assombro ao associar os esquemas, desenhos e diagramas a um velho manuscrito bem determinado. Então, o mais certo seria pensar que não, que não podia ser, que não era possível, que certamente estaria a sonhar, talvez tivesse até ensandecido. Talvez então se sentasse, de cabeça mergulhada nas mãos, num fugaz desespero. Mas logo a ergueria, pois algo em si decidiria que, desse por onde desse, não podia perder pitada do que se estava a passar, que cada segundo daquela dança, daquele canto, tinha a máxima relevância, que não podia perder-se da efemeridade do gesto, quer este fosse real, quer não passasse de delírio criado pela sua mente perturbada.
E, ao assim pensar, a associação de ideias talvez o levasse a lembrar-se tão, tão tardiamente de que dispunha de instrumentos de registo e gravação como parte do seu equipamento básico, instrumentos mais fiáveis, mais versáteis e com melhor definição e qualidade do que os sensores de vigilância e monitorização de presenças e de parâmetros ambientais que naquele lugar estavam sempre ligados em permanência. Então, seria provável que se atrapalhasse com bolsos e fechos, talvez com écrans e botões, na pressa os pôr em funcionamento, ainda pouco ou nada refeito de uma monumental estupefação.
E então, só então, começaria a descontrair-se, garantido que tinha o registo possível dos dados, certa que estava a possibilidade de analisá-los mais tarde. Porém, haveria questões que, por mais que tentasse, não conseguiria afastar da mente, questões que, todas juntas, formavam um colar de comos. Como podia aquele velhíssimo cartapácio estar a ser ali representado em dança e canto? Como era possível aquilo surgir de repente, sem que nada o antecipasse? Como podia o cisne, e logo aquele velho, plácido e praticamente inútil cisne, servir-lhe de veículo? Como? Como? Como?
Se alguém ali estivesse, seria provável que essas questões permanecessem longo tempo sem resposta, pois é condição dos antigos mistérios não se deixarem revelar assim sem mais nem menos. Mas da análise dos dados recolhidos algumas respostas decerto surgiriam, levando o império do conhecido a conquistar um pouco mais de território às florestas virgens do desconhecido.
Se alguém ali estivesse…
Mas não, há muito que ninguém ali estava.
Há muito que só o cisne por ali se movia.
Por isso, ninguém viu os desenhos que a dança da ave criou na areia, ninguém ouviu as palavras que a sua voz enrouquecida, mas tão diferente da de um cisne verdadeiro, fez ecoar na cúpula vazia daquela base morta. Nenhum ouvido escutou a harmonia do canto, nenhum olho observou a elegância do bailado. Pois as órbitas das três caveiras meio enterradas na areia estavam vazias e os seus eternos sorrisos não revelavam nem alegria nem embevecimento com a infinita improbabilidade que estava a desenrolar-se mesmo ali ao lado. Pelos corredores vazios da base abandonada, que rodeavam aquela cúpula, nenhum pé se movia, e a sala de controlo para onde outrora os sinais de vídeo nela captados teriam sido direcionados era um deserto de tecnologia, do qual as máquinas cuja função era manter tudo em perfeitas condições de prontidão haviam há muito sido forçadas a desistir por falta de peças.
E também por isso ninguém viu, horas mais tarde, o cisne falhar um passo, desafinar uma nota, e logo em seguida cair e não se conseguir levantar, deixando a meio, no chão, a representação de uma grotesca fileira de mulheres. Mesmo caído, ainda cantou mais alguns minutos, um canto que foi a pouco e pouco perdendo ritmo e harmonia, até finalmente perder também a voz.
Acorreram as máquinas por uma portinhola oculta num recanto sombrio, pegaram nele, levaram-no para o ninho, ligaram-no à tomada e deixaram-no a recarregar baterias. Mas era tarde demais. Quando despertou, um dia inteiro mais tarde, o cisne limitou-se a reiniciar a sua eterna rotina, esquecido de dança, de velhos manuscritos e de canto. Como se o cisne antigo tivesse mesmo morrido e aquele agora fosse um novo, inocente e virgem, de novo à espera.
Apenas à espera.

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