terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O Vil Metal


por Jorge Candeias


1.
Quando Alberto reparou pela primeira vez na moeda estava encostado ao balcão de um café. O plasma, na parede, berrava uma notícia qualquer acerca da última gafe de um membro do governo, e ele brincava com a moeda enquanto esperava que a funcionária ucraniana, ou moldava, ou lá de onde trouxera aqueles olhos verdes que mais pareciam dois poços de limos e águas translúcidas, acabasse de bater o distribuidor com violência no balde dos desperdícios, de o encher com café acabado de moer, de encaixar a peça na máquina com um movimento pleno de uma destreza trazida por anos de prática e de premir o botão. Enquanto a bica começava a jorrar para dentro da pequena chávena, e para outra que fora encostada a ela com um tinido cerâmico, em dois fiozinhos fumegantes de líquido creme, Alberto fez rodopiar a moeda, pondo-se depois a observá-la, absorto nos seus movimentos vagamente ordenados, vagamente equilibrados, fascinado, como ficava sempre que fazia aquilo, com o modo como uma rodela de metal sólido e opaco se transformava assim numa esfera translúcida, que parecia ao mesmo tempo estar ali e não estar. Quando a empregada desligou a máquina e depositou as chávenas em dois pires a que de antemão agregara as respetivas colherinhas e pacotes de açúcar, Alberto fez parar a moeda pondo-lhe a mão em cima e retirando-a de seguida. A moeda ali ficou sobre o balcão, de súbito imóvel, como que vazia de vida, na expetativa de ser recolhida e trocada pelo troco, mas a empregada limitou-se a depositar a bica ao lado dela e seguiu para outro ponto do café, a fim de entregar a outra chávena a outro freguês qualquer.
Alberto rasgou o pacote de açúcar e despejou-o até metade. Gostava do café só um tudo-nada amargo e o mais quente possível, e por isso mexeu-o com vigor, pousou a colher no pires e emborcou a bica em quatro goles rápidos, interrompidos por pequenos intervalos para deixar que o sabor lhe enchesse as papilas gustativas de informação sensorial. Por essa altura já a gafe ministerial se escoara do plasma, empurrada para outras paragens pelo ininterrupto fluxo do gás noticioso, e o pivô relatava com ar grave, enquanto uma imagem de fumo negro lhe soprava segredos de trás da orelha esquerda, o último atentado suicida algures numa cidade qualquer do Médio Oriente.
Alberto não ligou. Teria mais que tempo para ficar a saber de tudo aquilo logo à noite, a acompanhar-lhe o jantar, fazendo as vezes de arroz ou de batatas. Agora tinha uma certa pressa, precisava de se pôr a caminho da repartição para mais uma tarde a aturar utentes atrás de utentes atrás de utentes atrás de utentes atrás de…
Fez vaguear o olhar pelo café, em busca da empregada, a empregada genérica, fosse a dos olhos verdes, a brasileira com o sinal na bochecha esquerda, ou a portuguesa de cabelo negro de azeviche, com toda a certeza pintado, tanto fazia. Detetou duas, abraçadas às bandejas, a atender clientes junto às mesas lá ao fundo; a terceira não se via em lado nenhum.
Foi então que olhou para a moeda e a viu realmente pela primeira vez. Estava onde a deixara, sobre o balcão, um euro com o algarismo e o mapa escondidos, e o lado nacional virado para cima. Não era das mais comuns. Nem tinha selos de reis há muito mortos, nem a cara de um rei vivo, nem uma águia de asas redondas nem uma árvore hexagonal. Mostrava o busto de um músico austríaco que toda a gente dizia ter sido um génio, mas que a Alberto nem aquecia nem arrefecia, pois para ou pela música não tinha nem ouvido, nem conhecimentos, nem grande gosto, e dava-lhe a importância de um acompanhamento ocasional mas em grande medida irrelevante para aquilo que de facto interessava. Sabia, no entanto, de quem se tratava: Mozart, o velho Amadeu. Conhecia-o de um filme e principalmente de uma coleção de moedas que iniciara na altura em que o euro entrara em circulação, mas que depressa abandonara quando se apercebera de que moedas amarradas a uma coleção eram moedas que não poderia gastar no que lhe fazia mais falta.
Na moeda, no balcão, Mozart olhava-o, trazendo nos lábios de cuproníquel o seu sorriso enigmático. Começou a afastar o olhar, mas de súbito houve algo nela que lhe pareceu errado. Voltou a pegar-lhe para a examinar mais de perto, mas foi esse o momento escolhido pela empregada brasileira para lhe aparecer à frente com um sorriso que era como quem diz “pois não?” e ele encolheu mentalmente os ombros e entregou-lhe a moeda, reparando, como reparava sempre, no único pelo preto que lhe crescia, longo e encaracolado, no centro do sinal. “É para pagar esta bica”, explicou, indicando com o queixo a chávena suja à sua frente, e ela “Com certeza” com aquele seu erre enrolado que ele não fazia ideia nenhuma de que região seria, mas imaginava provir de algum recanto brasileiro bem afastado das megalópoles que toda a gente conhecia de ouvir falar e das telenovelas. A mulher recolheu o dinheiro num movimento rápido, trouxe-lhe o troco noutro movimento igualmente rápido, e partiu, perdido o interesse naquele cliente já despachado porque havia outros ainda por despachar. Alberto partiu também, despejando o troco na carteira onde as três ou quatro moedinhas de aço revestido a cobre que o constituíam se foram juntar ao punhado de outras moedas que já lá estavam dentro. Fora do café, a tarde esperava-o.

2.
No dia seguinte era a sua vez de ir ao pão e acordou com a cotovelada da Clara, seguida por um resmungo qualquer incompreensível, na voz de mimo que ela punha sempre que estava meio a dormir, o qual foi imediatamente seguido por uma violenta sapatada a fazer calar o despertador. Levantou-se, aos tropeções, aos tropeções se vestiu e aos tropeções se enfiou na casa de banho para tratar de lavar os dentes e a cara. Do espelho olhava-o um homem que não conhecia, que nunca conhecia apesar de o ver todas as manhãs, um homem meio careca e com o rosto bolachudo e cheio de vincos da almofada, um tipo completamente diferente do jovem moreno, atlético e cheio de cabelo que tinha absoluta certeza de ainda ser. Manhã sim, manhã sim, olhava-se assim, melancólico e desgostoso, e manhã sim, manhã não, fazia seguir a esse olhar um “merda” murmurado e saía de casa para ir comprar os seis papossecos do costume na mercearia da Dona Odete. Manhã não, manhã sim, o acordar era mais gentil e mais tardio, com o delicioso cheiro das torradas a puxar-lhe pelo estômago e a voz bem timbrada da Clara numa incessante tagarelice que não o deixava entregar-se demasiado à sua ensonada autocomiseração matinal.
Na rua que amanhecia fazia frio, e Alberto enrolou-se melhor ao blusão, com um arrepio, assaltado por uma grande vontade de espirrar assim que o sol lhe bateu na cara. Ainda lutava contra o espirro, ao mesmo tempo premente e renitente, perguntando a si próprio se se teria constipado, quando entrou na mercearia e a massa enorme da Dona Odete lhe deu os bons dias de cima de uma cadeira, encostada à caixa, que parecia pequena demais para lhe suportar o peso. Cheirava a salsa, a mulher. Cheirava sempre a salsa, como se se esfregasse em verduras antes de sair de casa, preparando-se desse modo campestre para enfrentar um dia na cidade. “Eram só os papossecos do costume, Dona Odete”, resmungou Alberto, e a mulher enfiou a mão sapuda numa espécie de gaveta, tirou de lá um saco de plástico transparente marcado “Sr. Sousa” a marcador preto e entregou-lho. Ele vasculhou a carteira, em busca de moedas pequenas, mas além de uma meia dúzia de euros tinha só um punhado de moedas de dois e cinco cêntimos, não chegava. Pegou, pois, numa das moedas de euro e ia para entregá-la à mulher quando algo o fez interromper o movimento e olhar a moeda com mais atenção. Outra moeda austríaca. Outra vez a cara de Mozart a olhá-lo com o seu sorriso enigmático. “Engraçado”, disse, erguendo o olhar para os olhos claros da Dona Odete, que quase desapareciam no meio da sua cara redonda, submersos em gordura, “quase não se veem por aí moedas austríacas e esta é a segunda que me aparece em dois dias”.
A mulher olhou-o por um instante num silêncio de indiferença, depois encolheu os ombros com uma lentidão de montanha enquanto ele voltava a baixar os olhos para a moeda, dizendo algo como “se calhar veio aí alguma excursão lá da Austrália, vizinho”. Mas a voz da mulher chegou-lhe aos ouvidos como se se tivesse de repente distanciado alguns metros, um resmungo mais ou menos indistinto, pois era de novo assaltado pela sensação de que alguma coisa naquela moeda não estava exatamente como devia. Observou-a com atenção por um momento em que tudo à volta pareceu parar, como se tivesse subitamente surgido à sua volta uma bolha de tempo, até que reparou em duas ténues linhas que como que prolongavam a boca, deformando-a, transformando o sorriso enigmático que o escultor imprimira em todas aquelas moedas num esgar que, apesar de também conter enigma, era mais inquietante do que outra coisa qualquer.
Obra de algum idiota que achara divertido fazer aquilo com um canivete ou outro objeto estreito, duro e bem afiado, sem dúvida. Sem dúvida. E idiota se sentiu também Alberto ao cair em si e entregar a moeda à mulher, com um “Desculpe” envergonhado, vendo-a a olhá-lo com uma expressão que lhe pareceu estranha apesar de ser difícil descortinar expressões concretas naquela cara obesa em excesso.

4.
À tarde, vinha de regresso da repartição, por um dia livre de utentes, utentes e mais utentes, quando no painel de instrumentos do carro uma luzinha amarela começou a piscar, da primeira vez com um clarão tão rápido que só o viu com aquela parte do subconsciente que está sempre atenta àquilo que de invulgar se intromete na banalidade quotidiana, mas depois com crescente insistência. Estava com fome, a carripana. A reserva ainda daria perfeitamente para chegar a casa e fazer uma vida normalíssima durante um par de dias, mas Alberto tivera no passado experiências desagradáveis com esse tipo de deixa-andar, e de qualquer maneira havia uma bomba um pouco mais à frente. Não demorou a chegar lá e descobriu-a praticamente vazia. Só lá se encontrava uma carrinha branca com matrícula espanhola que se encostava à bomba do gasóleo com ar sôfrego e cansado.
Parou o carro na bomba mais afastada, aquela que ficava mais perto da saída e obrigava a menos rodopios de guiador para executar a manobra. Saiu do carro, abriu a carteira para verificar se tinha trazido o multibanco, viu que sim, marcou trinta euros na bomba, retirou a agulheta do suporte, abriu o depósito do carro, enfiou a agulheta lá dentro com um clangue suave e apertou o gatilho. Durante um momento nada aconteceu, mas não demorou a ouvir a cascata de gasolina a espalhar-se pelo depósito, enquanto na bomba os números se sucediam com uma regularidade hipnótica. Quando pararam, depois de atingido o valor marcado, retirou a agulheta com outro clangue igualmente suave e duas pancadinhas para fazer cair a última gota, fechou o depósito, repôs a agulheta no suporte e encaminhou-se para a loja. Abriu a porta e o costumeiro festival de cores dos rótulos que competiam pela sua atenção incomodou-o um pouco, como era hábito. Mas trazia fome da repartição e resolveu ceder à tentação de uma barra de chocolate, abrindo-a logo ali antes mesmo de a pagar e dando uma dentada na mistura de pasta cremosa e bocadinhos de frutos secos, enquanto se dirigia ao balcão e parava atrás de um homem que devia ser o condutor da carrinha espanhola, apesar de estar a conversar com o funcionário num português perfeito. A espera deu-lhe tempo para engolir mais de metade do chocolate e abocanhou o resto quando se viu perante o empregado, apresentando o pacote vazio para que ele passasse por cima do código de barras o mágico aparelhómetro da luz vermelha, que sabe sempre os preços todos, e lhe pedisse trinta e dois euros com um ar de enfado, como quem diz “Não podias ter esperado um bocado, glutão de merda?”
Voltou a puxar pela carteira, tirou do interior o multibanco e entregou-o ao funcionário, o qual fez deslizar o cartão pela ranhura da máquina e lhe apresentou o teclado para que introduzisse o código, coisa que Alberto fez em modo automático, deixando os dedos livres para saltitar sozinhos de número em número. Depois foi outra vez obrigado a esperar, pois a rede estava lenta e o terminal levou o seu tempo a contactar com a base de dados central, a verificar-lhe o saldo, a fazer os cálculos necessários para lhe subtrair dinheiro da conta e o somar à conta da empresa gasolineira, e a enviar ao terminal a mensagem de que tudo estava bem e podia imprimir os talões. Enquanto esperava, pôs-se a brincar com a carteira, ainda boquiaberta, num espanto de se ver tanto tempo ao ar livre e espoliada de um cartão magnético, seu eterno companheiro, e achou-a de repente um pouco pesada em demasia, como se contivesse mais moedas do que devia.
Abriu-a e tirou as moedas para fora. Não se lembrava de ter tantas, em especial moedas de euro que geralmente eram as primeiras a bater asas e ir enriquecer outros intervenientes na rede económica. Ficou a olhá-las por um instante, espalhadas na palma da mão, confuso, e reparou com um ligeiro sobressalto que pelo menos numa delas Mozart o olhava com um enigmático sorriso, vagamente inquietante. Devolveu-as rapidamente à carteira, sacudindo a cabeça, procurando com esse gesto sacudir também o incómodo e a surpresa e deixar-se de parvoíces, no que foi ajudado pelo terminal do multibanco que escolheu esse preciso momento para dar por concluída a transação e cuspir os talões que o funcionário enrolou no cartão e lhe entregou com um resmungo de “boa viagem”.
Alberto enfiou o cartão e os talões na carteira e encaminhou-se para a porta, esboçando o gesto de a devolver ao bolso. Porém, quando agarrou o puxador com o anelar e o indicador e começou a empurrá-lo com a base da mão, parou, ficou ali um instante indeciso enquanto outro cliente se aproximava, e voltou para trás. Dirigiu-se ao expositor dos chocolates, pegou noutra barra igual à que tinha comido e regressou ao balcão. “Estava bom”, explicou ao funcionário como quem se desculpa com um sorriso e uma meia verdade, e depois abriu a carteira e pôs-se a vasculhar o compartimento das moedas, em busca de uma certa moeda de euro com uma efígie adulterada de Mozart. Depressa a encontrou, observou-a com intensidade durante um breve momento e entregou-a ao funcionário, sem se importar com a expressão de vago desprezo com que este o brindou. De seguida, recolheu o troco e foi-se embora.

8.
À noite, após o jantar, regressou ao café a fim de tomar a última bica da noite. Ao pegar na carteira para sair de casa voltou a estranhar-lhe o peso e, quando a enfiou no bolso de trás das calças, achou-a gorda, como se tivesse comprado qualquer coisa que o houvesse recompensado com muito troco e este tivesse vindo em numerosas moedinhas pequeninas. Não a abriu. Não saberia explicar porquê se lho perguntassem, mas decidiu, meio consciente, meio inconscientemente, que o melhor era ignorar aquele volume cada vez mais insólito, fingir que não existia, pelo menos até que não tivesse outra hipótese a não ser enfrentá-lo.
No café, o plasma mostrava outro pivô, de outro canal, a comentar as mais recentes ramificações da gafe ministerial do dia anterior, enquanto um sorrisinho vagamente maroto lhe brincava no canto do olho, e logo em seguida foi posta no ar uma reportagem em que os familiares corredores da Assembleia da República serviram de palco para um desfile de líderes partidários que a comentavam, um após outro, todos de sorrisinho maroto a brincar no canto do olho.
Todos menos um, claro; nada havia de marotice no ar enfadado do representante do partido do governo.
Alberto distraiu-se com aquilo até receber a bica das mãos da empregada, a portuguesa, a dos cabelos pretos de azeviche. Apesar de nada na confusão surrealista em que a política mediática se transformara nos últimos tempos lhe despertar o mais pequeno interesse, naquela noite prendeu a atenção ao plasma com uma sofreguidão de náufrago. Bebeu a bica devagar, parando entre minúsculos tragos para mexer um pouco mais o líquido preto que perdia rapidamente a espuma e o calor, sem nunca desviar os olhos da emissão, que da gafe passara a uma não menos desinteressante visita de estado do presidente da comissão europeia a um país em crise, e desta seguira para o Médio Oriente, onde se sucediam retaliações ao atentado, retaliações às retaliações e contrarretaliações às retaliações das retaliações. Mesmo depois de pousar a chávena pela última vez, Alberto ali ficou, encostado ao balcão, de olhos presos àquele horror quotidiano, feito de carne e sangue e ódio mas transformado em plasma para deleite das multidões, enquanto a carteira se lhe apertava contra a nádega direita como que a dizer-lhe que estava ali, que não se iria deixar ignorar com aquela facilidade.
Acabou por ser a empregada dos olhos verdes como poços de águas translúcidas a quebrar aquela espécie de encanto sem encantamentos nem magia, perguntando-lhe simplesmente, no seu sotaque eslavo, se queria mais alguma coisa, ao que Alberto respondeu que não, que era só pagar e ia-se já embora. Levou a mão ao bolso das calças, puxou pela carteira, abriu-a. Um montículo de moedas olhava-o lá de dentro, nove de euro e mais umas quantas de valores menores, e em cima de todas, brilhando com um esgar trocista na face nacional, Mozart observava-o fixamente. Não foi por já calcular que iria encontrar precisamente aquilo que o choque foi menor, e Alberto ali ficou por um bom bocado, imóvel, a olhar estupidamente para as moedas que despejara na palma da mão, até que a empregada, talvez cansada de esperar, lhe perguntou no seu português atrapalhado “Senhor? Estás bom? Pode pagar?”, ao que ele respondeu um curto “Sim, claro” e lhe entregou Mozart, dizendo de seguida “Espere” já a rapariga se dirigia para a caixa. Quando ela se virou, surpreendida, acrescentou “Não me pode trocar estas cinco moedas por uma nota, se faz favor? Estão a pesar-me na carteira”. A empregada não respondeu, mas aceitou as moedas, e Alberto ficou a vê-la transportar Mozart e os companheiros até à caixa, atirá-los lá para dentro, marcar o consumo, esperar que a máquina cuspisse o talão e retirar da gaveta o troco e uma nota de cinco euros que de seguida lhe entregou.
Alberto resmungou um “Obrigado”, fez um sorriso que ele próprio achou desastrado, e saiu do café, sentindo-se vagamente culpado, vagamente criminoso, como se tivesse cometido algum pequeno delito, como se tivesse roubado algo a alguém.

16.
Na manhã seguinte era de Clara o turno do pão, e Alberto, num dia normal, ficaria na modorra, meio adormecido, meio acordado, enquanto escutava, vindos de bem, bem longe, os ruídos que ela fazia a lavar-se, a vestir-se, a sair, e depois um intervalo preenchido apenas com os sons da rua, abafados pela janela fechada, e com uma ocasional descarga de autoclismo nalgum dos outros apartamentos do prédio, e então ela a entrar e a atarefar-se na cozinha até que o cheiro do pão torrado lhe chegava ao nariz e ele abria os olhos, se espreguiçava e dava finalmente início ao dia.
Mas não naquela manhã. Naquela manhã acordou em sobressalto assim que o despertador soltou a primeira nota, e em vez da doce modorra matinal Alberto teve apenas direito a longos minutos passados teimosamente de olhos fechados enquanto o cérebro, bem desperto, ia prestando uma atenção nervosa a cada ruído, por mais ínfimo ou familiar que fosse. Em lugar do abandono, em vez de passar dez minutos num relaxamento completo, com todos os músculos do corpo descontraídos numa harmonia horizontal, sentia-se tenso, contraído, desconfortável, o colchão parecia ter nós que se lhe enterravam nos braços, nas pernas, no tronco, por todo o lado. Acabou por atirar a roupa para longe, irritado, e quando Clara regressou da rua, queixando-se do frio mas sempre com a típica boa disposição matinal que nada parecia ser capaz de abalar, já ele estava vestido e lavado a pôr o leite a aquecer no micro-ondas. Ao vê-lo ali, Clara inclinou a cabeça para o lado, surpreendida, mas depois fez um sorriso e deu-lhe os bons-dias e um beijo. Conversaram sobre ninharias, como todas as manhãs, e Alberto participou do ritual sem entusiasmo mas deliberadamente, comendo devagar, mais do que era hábito, dando dentadas pequenas na torrada, misturando-a dentro da boca com pequenos goles de café com leite e engolindo tudo só depois de muito bem mastigadinho. Clara terminou primeiro que ele, despejou a sua loiça suja no lava-loiça e deixou-o ali sozinho, a tentar esvaziar a cabeça que, apesar da tentativa, ou talvez por causa dela, se lhe enchia de inquietações desconexas e vagas. Só tomaram uma forma mais definida quando lhe chegou a voz de Clara, em tom de surpresa e com o timbre que naquela casa os sons tomavam depois de percorrerem o caminho da sala até à cozinha. “Que faz aqui este montinho de moedas?”, perguntou essa voz, e ele retesou-se como se tivesse apanhado um choque elétrico, balbuciando um “Quê?” porque não sabia que outra coisa lhe dizer, mas essa palavra equivalia a pedir-lhe que repetisse a pergunta, e foi isso mesmo que ela fez. “Ah, isso… foi… foi o troco que me deram ontem no café”, acabou por mentir, corando até aos cabelos, depois de uma pausa que se prolongou durante um instante demasiado longo. “E também uma dívida antiga que o Martins me pagou” acrescentou devido a um palpite súbito de que as moedas seriam demasiadas para que fosse credível tratar-se de um simples troco. Clara surgiu à porta da cozinha, de novo já de casaco e mala e boina na cabeça, pronta a sair, olhando-o com curiosidade, mas não fez mais comentários e limitou-se a atirar-lhe um beijo e um até logo e a sair.
Alberto deitou um relance ao relógio, que o declarou atrasado, ergueu-se e foi até à sala buscar as chaves, os documentos e a carteira, três objetos compostos, que costumava abandonar sobre a mesa todas as noites. E aí estavam eles, acompanhados por uma pequena pilha desordenada de moedas de euro que ele olhou com um estremecimento, já sabendo que nela iria encontrar, logo no topo, em posição de destaque, uma efígie subtilmente deformada de Mozart. Recolheu as chaves e os documentos e pô-los no bolso, e de seguida hesitou entre pegar na carteira, abri-la e tentar enfiar lá dentro todas aquelas moedas, ou simplesmente ir-se embora. Decidiu que seria estúpido sair sem dinheiro nem cartões, optou por uma solução de compromisso, recolhendo a carteira mas deixando ficar para trás Mozart e a sua coorte de rodelas de metal. Ao abrir a porta sorriu, estranhamente aliviado. Não gastaria a moeda, mantê-la-ia na sua posse, mas não na sua posse imediata. Isso talvez resolvesse tudo. Talvez.

32.
Um par de horas mais tarde, o utente queixava-se do tempo que já levara à espera, que não podia ser, que tinha mais que fazer, que raio de país este em que nunca nada se faz sem que as pessoas sejam obrigadas a deitar à rua horas da sua vida em esperas intermináveis, e do outro lado do balcão Alberto forçava um sorriso e procurava concordar discordando, dando toda a razão ao utente ao mesmo tempo que pedia desculpa em nome do departamento mas o senhor doutor estava atrasado, não sabia a que horas chegaria, teria sem dúvida algum compromisso urgente ou alguma reunião que se prolongara durante mais tempo do que tinha sido previsto, são coisas que acontecem, não, não telefonara a avisar nem a dar nenhuma informação, lamentava mas tinha as mãos atadas, se pudesse aguardar só mais um pouco certamente que o senhor doutor chegaria já-já, e ao mesmo tempo ia pensando que o mais certo era o velho Barros ter decidido que não lhe apetecia aturar aquele utente em concreto, que seria perda de tempo, irritação, incómodo, o que fosse, arranjando por isso um compromisso i-na-di-á-vel sem se dar ao trabalho de avisar os subalternos, era típico, useiro e vezeiro. Por conseguinte, era Alberto obrigado a aturar o utente, perdendo o seu tempo, enquanto nas suas costas, sobre o tampo da secretária, uma pilha de processos por despachar ia sorrateiramente ganhando pó e ácaros e como que se reproduzia, não saberia dizer se com reprodução sexuada se por cissiparidade. E o utente não se calava, continuava a barafustar, sempre a barafustar, acompanhado pela solidariedade muda de outros utentes que sofriam do mesmo e iam abanando as cabeças em concordância, enquanto Alberto ia deixando a pouco e pouco de o ouvir, se ia entregando ao piloto automático, ia pensando noutras coisas, na Clara, no que haveria de comprar para o almoço, em ir naquela noite ao cinema ver um filme que quase toda a gente dizia que era bestial, e também naquilo em que não queria pensar, naquele bizarro assunto das moedas que tinham ficado empilhadas sobre a mesa da sala.
E foi nesse preciso momento que sentiu uma espécie de formigueiro na pele da coxa, sob o bolso das calças, à frente, do lado direito, um formigueiro que primeiro sentiu como se tivesse um inseto preso entre a pele e o pano, e depois foi ganhando peso e pressão até que o movimento parou, levando consigo a sensação de peso, e ficou só a pressão. O sorriso que afivelara para apaziguar o utente sumiu-se-lhe da boca e não se lhe sumiu dos olhos porque nunca neles tinha estado. Dos olhos, o que desapareceu foi a imagem do utente quando Alberto olhou para baixo, para o bolso das calças, e deparou com um volume que não devia ali estar. Pensou um “merda” carregado de veemência, e devolveu o olhar ao utente, que se tinha calado quando Alberto o afastara. Voltou a forçar a boca a formar um sorriso, disse “Peço mais uma vez desculpa, senhor doutor, mas o doutor Barros certamente não demora. Aguarde um pouco mais, por favor”, e virou costas ao utente sem lhe dar tempo para reatar os protestos. Atravessou a repartição quase a correr, entrou na casa de banho, trancou a porta e enfiou a mão no bolso. O toque frio e redondo confirmou-lhe o que já suspeitava, e os dedos fecharam-se-lhe sobre uma das moedas, a primeira em que tocaram. Ficou a olhá-la por um longo momento, vendo sem ver o esgar trocista que Mozart lhe dirigia, enquanto a cabeça se lhe enchia de perguntas sem resposta. Que merda era aquela? De onde vinham aquelas moedas? Porquê ele? Porquê Mozart? Que raio lhe estava a acontecer? Que podia fazer para se ver livre daquilo? Como era possível? Como, porquê, como, como, como?...
Atirou a moeda para dentro da sanita, ouviu-a a fazer ploft e depois um tim abafado, e puxou o autoclismo. A cascata de água encheu-lhe de espuma o campo de visão, mas quando a torrente se acalmou e acabou por se extinguir não havia ali nenhum sinal de moeda. Que os ratos e as baratas se preocupassem com ela, pensou, mas tirou outra do bolso, só para se certificar de que não mostrava mais uma vez uma efígie deformada de Mozart, e foi com alívio que viu o rosto bem mais familiar do rei de Espanha, sem nenhum sinal de diferença, uma moeda comum, igual a tantas outras que lhe tinham vindo a passar pelas mãos ao longo dos últimos anos.

64.
Tinha acabado de meter a chave na fechadura de casa quando o saco em que trazia a sopa e o arroz à valenciana que escolhera para o almoço começou a ficar quase meio quilo mais pesado. Abriu a porta à pressa e mais à pressa ainda a fechou, com medo de que as moedas rasgassem o plástico fino e se começassem a derramar pelas escadas do prédio, alertando com o seu tilintar a vizinhança. Imaginou logo telefonemas para a polícia, interrogatórios, onde arranjou todas estas moedas de euro, para que as quer, se são suas e se diz que são apresente por favor o talão do levantamento, se não são faz favor de nos acompanhar à esquadra para esclarecer cabalmente este assunto. Imaginação descontrolada, está bem de ver, pois quem meteria a polícia por causa de simples moedas, na aparência vulgaríssimas, e quem não saberia, mesmo entre os mais obtusos dos agentes da autoridade, que nenhum levantamento entrega moedas, com talão ou sem ele. Descontrolada e descabida, pois não houve tilintares nem interrogatórios, fardas ou carros pintados de azul e branco com rotativas sobre o tejadilho. Mesmo assim, Alberto encostou-se à porta, de coração aos saltos, sentindo-se farto daquilo e mais do que um pouco desesperado, depois entrou na cozinha, pousou o saco na mesa, sentou-se e fixou nele os olhos. Passaram-se longos minutos, todos eles lentos como se o tempo se tivesse transformado em melaço, até que o estômago decidiu deixar de colaborar naquela inação e soltou um ronco, e logo de seguida outro. Alberto arrancou-se ao torpor e mergulhou a mão nas moedas para desenterrar os recipientes com a sopa e o segundo. Por mais estranho que tudo aquilo fosse, não valia a pena passar fome. Mas não foi capaz de encontrar em si forças para pôr a comida no prato e este no micro-ondas, e comeu-a mesmo assim, como estava, já fria e diretamente dos recipientes, mergulhando devagar a colher na vasilha da sopa sem desfitar o saco onde as moedas, agora sozinhas no interior, formavam ainda assim um volume razoável, e despachando depois o arroz com a mesma imobilidade no olhar.
Quanto acabou de comer o arroz levantou-se, ainda sem tirar os olhos do saco que pertencia agora por inteiro às moedas, tirou, às apalpadelas, uma banana da fruteira, descascou-a até metade e deu-lhe uma dentada. Então, num impulso, passou a banana para a mão esquerda e enfiou a direita no saco, agarrando a primeira moeda em que tocou. Foi para observá-la que afastou pela primeira vez os olhos do saco. Mozart devolveu-lhe o olhar, com o seu esgar deformado que parecia troçar dele de uma forma cada vez mais nítida, cada vez mais assustadora. Deixou cair a moeda, deixou-se cair na cadeira, deixou cair a metade da banana em cima da mesa e afundou o rosto nas mãos. Não. Podia. Ser.
Não.
Podia.
De súbito, sentindo-se invadido por uma fúria incontrolável, levantou-se, atirou com força a moeda para dentro do saco, agarrou neste sem cerimónia, percorreu o corredor, atravessou a sala e debruçou-se da varanda para ver se por acaso haveria muita gente lá em baixo, viu que não, arremessou o saco das moedas, entregando-o ao vento e à gravidade, e regressou imediatamente para dentro do apartamento não fosse alguém vê-lo, fechando a porta da varanda em silêncio, com cuidado, de ouvido à escuta do estrondo do saco e das moedas a cair lá em baixo, esperando não o ouvir acompanhado por gritos, choros, chiadeiras de pneus ou o estalejar de vidros partidos. Não ouviu nada disso. Ouviu apenas um ruído surdo e metálico e, algum tempo depois, um burburinho de vozes excitadas.
Deviam estar a lutar pelas moedas, os idiotas.

128.
A meio da tarde, Alberto encontrava-se em casa, nervoso, estendido no sofá, com o telecomando na mão e a televisão ligada, saltitando de canal em canal num frenesi exasperado. Já fora ao café, já tomara uma bica, já ouvira a conversa excitada da empregada brasileira acerca do saco que tinha caído na rua, aparentemente vindo do céu, com alguns duzentos ou trezentos euros em moedas lá dentro, e não queira saber o vizinho a confusão que aquilo foi, já abanara a cabeça perante o exagero, já regressara a casa e telefonara para a repartição a dar parte de doente (é uma dor de cabeça terrível, terrível, se continuar vou ao hospital) e depois de tudo isso instalara-se na sala, à espera. Oscilando entre a esperança de se ter finalmente visto livre daquela bizarria que há dois dias lhe enchia a vida com um caos em progressão geométrica e a certeza de que aquilo não ficaria por ali, de que, tarde ou cedo, Mozart regressaria com o seu esgar deformado e uma comitiva de moedas, maior do que as anteriores, sempre maior do que as anteriores, Alberto fora ficando cada vez mais nervoso à medida que a tarde avançava e o sol descaía para ocidente. Quando as moedas se começaram a materializar sobre o seu peito, deu um salto e um grito, e sem saber como achou-se em pé, a saltitar pela sala fora, seguido por um rasto de moedas que se derramavam pelo chão fora e rolavam em todas as direções até irem esbarrar com uma perna de cadeira ou de mesa, com uma parede, com a porta, pondo-se depois a rodopiar durante longos segundos com um ruído que quase parecia o de uma mó a moer pedra, até por fim se aquietarem numa camada de rodelas compostas principalmente por níquel e cobre. Alberto quis fugir dali e desatar a correr pela rua fora, quis fechar-se no quarto ou na despensa e não sair nunca mais, quis encontrar um meio qualquer de ficar a saber de uma vez por todas o que diabo lhe estava a acontecer, quis uma série de coisas ao mesmo tempo até lograr por fim acalmar-se, respirar fundo, apoiado à mesa, pegar por descargo de consciência na moeda mais próxima, virá-la para a face nacional e contemplar uma vez mais o rosto retorcido do velho compositor austríaco. “Filho da puta”, resmungou, raivoso, “filho duma carroça de putas, que me estás tu, meu cabrão de merda, a fazer?”. Mas a cabeça de níquel e cobre de Herr Wolfgang não respondeu, nem sequer se moveu, continuou simplesmente a olhá-lo com aquele sorriso escarninho de quem sabe mas não diz. E Alberto pousou a moeda sobre a mesa, bem no centro, recolheu tudo o resto que nela repousava, deixando Mozart sozinho no centro do disco de vidro, e sentou-se a olhá-la, de costas para a janela. Ficaria ali o tempo que fosse preciso, decidiu.

256.
Ainda estava à espera quando Clara chegou do trabalho. Ouviu-a sair do elevador e soube logo que era ela, ouviu-a enfiar a chave na fechadura do apartamento, ouviu-a abrir a porta, fechá-la, soltar um “aah, quentinho bom” numa voz animada, enfiar o guarda-chuva no balde dos guarda-chuvas, despir o casaco com um minúsculo gemido e pendurá-lo no cabide, e depois dirigir-se à sala, estacar, sobressaltada, talvez por vê-lo ali, talvez por ter visto primeiro as moedas que continuavam espalhadas por todo o lado. Ouviu-a então aproximar-se dele, pé-ante-pé, como que a medo, e pouco depois de as pernas dela terem penetrado na periferia do seu campo de visão, ouviu-a murmurar “Alberto?” com uma voz trémula. Ergueu o braço direito com a mão aberta, mas não desviou nem por um segundo os olhos da moeda. “Que se passa, Alberto?” perguntou ela, e ele “Calma, já te explico, espera um bocadinho”, e ela esperou um bocadinho mas depois, já sentada à mesa, na sua frente, insistiu “Alberto, olha para mim. Que se passa?”, e ele, mentindo, “Está tudo bem, Clara”, e ela, estendendo o braço por sobre a mesa, interpondo-o por um breve instante entre os seus olhos e a moeda “Não parece, amor. Estás doente?”, e ele afastou-lhe bruscamente a mão, aflito, mas quando voltou a ver a moeda já Mozart estava a ondular como se uma milimétrica pedrinha tivesse mergulhado no metal e este fosse um lago redondo de alguma espécie de líquido, e logo em seguida ficou translúcido e uma grande pilha de moedas materializou-se no mesmo instante sob o queixo de Alberto, obrigando-o a afastar bruscamente a cadeira da mesa e pondo Clara aos gritos, em pânico, a correr pela sala fora.
Quando, muito mais tarde, ela conseguiu acalmar-se, Alberto contou-lhe tudo.

512.
Hora e meia depois, Clara preparava o jantar e Alberto ajudava trazendo-lhe o que ela ia pedindo, por vezes de um modo razoavelmente desajeitado pois quase não usava a mão esquerda, mantendo esse punho cerrado em volta de uma rodela de metal gravada com um busto de Wolfgang Amadeus Mozart que sorria um sorriso inquietantemente deformado. Para fazer alguma coisa, para tentar compreender, e porque da última vez só se passara algo depois da moeda ter saído do campo de visão dele, tinham decidido experimentar mantê-la em contacto com a pele, tentando assim quebrar o feitiço, ou a praga, ou o que raio era aquilo. E tinham também decidido que não seria uma moeda caprichosa, quiçá se demoníaca, a imiscuir-se-lhes nas vidas e a desordená-las, que o mundo que lá fora corria normal e pacato era de facto normal e pacato, que se conseguissem ignorar o que de invulgar acontecesse nada de invulgar aconteceria. Falavam pouco. Clara enviava-lhe solicitações com uma precisão cirúrgica, e Alberto fazia o que podia por lhes responder satisfatoriamente, sentindo-se desajeitado e inútil com uma mão a menos, e incapaz de afastar a certeza de que a tentativa não resultaria, de que, cedo ou tarde, a moeda voltaria a entrar em convulsões ondulatórias e ele acabaria de novo submerso por uma vaga de moedas de euro, maior que as anteriores, sempre maior que as anteriores.
Foi por isso sem grande surpresa que, no momento em que se afastava do frigorífico com dois ovos na mão direita, sentiu a esquerda ficar de súbito vazia. Teve apenas tempo de murmurar “Já está” antes de começarem a aparecer-lhe moedas de euro nos bolsos da camisa, nos das calças, nos do roupão, e até no cós das calças e dentro das cuecas, derramando-se para o chão num ensurdecedor estrondo de metal e ladrilhos, por entre os gritos agudos de uma Clara que, aparentemente, tivera mais esperança nos resultados da experiência do que ele.
Alberto passou os minutos seguintes a despir-se e a tirar mancheias de moedas de dentro da roupa, e ela a varrer moedas para uma pá e depois a despejá-las dentro de um balde. Não trocaram uma única palavra. E o jantar foi totalmente esquecido, meio feito, em cima do fogão desligado que ia arrefecendo depressa.

1024.
Alberto poderia ter jurado que não seria capaz de pregar olho naquela noite, mas assim que caiu na cama, às quatro da manhã, de olhos a arder de ter passado horas a fio a fitar a moeda, com Clara enroscada sobre o peito, contribuindo com o calor do seu corpo para lhe dar ânimo, mergulhou num sono inquieto. Estava exausto. Emocionalmente, bem entendido, mas também mentalmente, desgastado pela miríade de soluções que congeminara para aquele problema, apenas para as abandonar quase de imediato ao achá-las impossíveis, tolas, disparatadas ou meramente irrealizáveis. Clara desistira primeiro, resmungando entre bocejos que o melhor que faziam era mandar a moeda à fava, deixá-la na sala e ir dormir, que se aquela porcaria se reproduzisse o problema seria dela. Tentara convencê-lo a ir consigo para o quarto, mas já perdera as forças para ser muito insistente e quando Alberto disse que não, que ia ficar ali, dera-lhe um beijo triste e retirara-se aos cambaleios. Hora e meia mais tarde, Alberto acabara por chegar à mesma conclusão e seguira-a, convencido de que se iria apenas deitar, puxar o edredão até ao nariz, e passar a noite a pular da cama a cada ruidinho que ouvisse, vindo de dentro do apartamento ou da rua, real ou imaginário. Mas em vez disso os olhos tinham-se-lhe fechado e a consciência apagara-se-lhe tão depressa como se estivesse sob o efeito de algum hipnotizador e este tivesse estalado os dedos.
Acordou quarenta e cinco minutos depois, no momento em que mais de mil moedas de euro se materializaram de repente cinco centímetros acima da cama e choveram em cima dele, mais de sete quilos de uma espécie metálica e quente de granizo. Aquilo doeu. Mas pior, muito pior do que a dor foi o susto, e quando Alberto caiu em si estava aos berros e desfeito em lágrimas, ajoelhado a um canto do quarto, agarrado convulsivamente ao lado da cabeça que estivera virado para cima, enquanto um fiozinho de urina quente lhe corria pelas coxas abaixo e se ia juntar a um charco que alastrava pelo soalho. Clara, apesar de não ter sido atingida pelas moedas, também gritava, igualmente em pânico, identicamente acordada em sobressalto. A primeira reação dela fora precipitar-se para fora do quarto, mas depois regressara e fora abraçar-se-lhe, aos soluços, sem ligar a menor importância ao líquido que o rodeava e ao cheiro pungente que este exalava. Entretanto, Alberto parara de gritar e agora ria, ria sem parar enquanto grossas lágrimas lhe continuavam a escorrer pelo rosto abaixo, e só longos minutos depois os dois se acalmaram o suficiente para começarem a recompor-se.
Mais tarde, já lavado e vestido de fresco, com uma pá e uma vassoura na mão, a varrer moedas de euro e a despejá-las dentro de um grande saco de lixo, enquanto Clara passava, desgrenhada, uma esfregona ensopada de detergente sobre a mancha de urina, Alberto disse-lhe, numa voz que procurou fazer soar risonha:
“Isto pode bem acabar na minha morte. Mas ao menos morro rico”.

2048.
Depois daquilo, Clara estendeu-se no sofá, dizendo e repetindo e voltando a repetir que ia com toda a certeza passar o resto da noite acordada, mas não foi capaz de resistir mais do que meia hora, e Alberto, quando ficou convicto de que a mulher estava mesmo a dormir, levantou-se, vestiu umas calças de ganga, uma camisa e uma camisola de lã, enfiou no bolsinho dos trocos a moeda que estivera até ali a observar, calçou-se, enfiou nos outros bolsos as chaves, os documentos e a carteira, pegou no casaco e saiu, sorrateiro, do apartamento.
Lá fora ainda estava escuro, embora a oriente a aurora já tivesse começado a espalhar a sua luz pelas abertas entre as nuvens. A rua encontrava-se vazia, dir-se-ia que morta, se não se contasse com um gato adequadamente pardo que espreitou por entre as rodas da frente de um carro estacionado, avaliou atentamente aquele vulto humano que surgira no seu território a uma hora a que não deviam andar vultos humanos por ali, e depois pareceu assustar-se com qualquer coisa e desapareceu num ápice. Alberto foi abalado por um arrepio: a noite estava fria. Devia ser isso.
Então, sentiu um leve formigueiro na pele da coxa, na zona onde só um pouco de tecido a separava da moeda. Por instinto, e também porque já esperava o que aconteceu a seguir, encolheu-se e encostou-se à parede do prédio, protegendo a cabeça com as mãos e os braços. Uma pesada chuvada de moedas de euro abateu-se sobre ele, estrondeando ensurdecedoramente nas pedras da calçada, atingindo-lhe com violência os nós dos dedos e as orelhas, abrindo alguns golpes pouco profundos, que coagularam de imediato, sangrando apenas o suficiente para formar pequenas crostas.
Pegou numa moeda, numa moeda qualquer, pois já sabia que não importava a moeda escolhida, ela seria sempre a original, a primeira, a do Mozart de esgar retorcido, teimou em enfiá-la no bolso dos trocos e dirigiu-se para o carro, pensando que deveria ter trazido luvas e um chapéu. Ou, melhor ainda, um capacete. Abriu a porta e entrou, pensando agora, com um sorriso triste nos lábios, que um tipo se habitua a quase tudo.

4096.
Levou o automóvel pelas ruas vazias da cidade, subindo e descendo as colinas em que esta se erguia, descendo mais do que subindo. Os semáforos, intermitentes, mantinham-no acordado e poucos foram os carros com que se cruzou. A viagem foi curta, não mais que uns dez minutos, até estacionar o carro no parque de estacionamento da zona ribeirinha. Saiu do automóvel e fechou a porta. Soprava um vento gelado vindo do rio, e ele foi sacudido com alguma violência por um arrepio, mas avançou mesmo assim até à margem, vendo a extensão de águas plácidas e profundas crescer na sua frente. Os seus dedos enregelados tiveram dificuldade em retirar a moeda do bolso dos trocos, mas lá conseguiram, e Alberto observou-a por todos os lados à luz dos candeeiros de iluminação pública, pois a aurora, ainda longínqua, pouco ajudava. Mozart devolveu-lhe o olhar, claro, com aquela expressão detestável. Cuspiu na moeda, pleno de repugnância, puxou a mão bem atrás, atirou-a com toda a força que conseguiu reunir e ficou a vê-la descrever a sua trajetória parabólica, rodopiando, em relampejos de luz refletida, e acabar por desaparecer nas águas escuras com um ploft. Sim, pensou. Não serve de nada mas sabe bem.
Afastou-se do rio, parou, estendeu os braços em cruz e ergueu o rosto para o céu, num desafio. Era como se dissesse “Vá!” Era como se gritasse ao universo, em desafio e em fúria, “Vá, atira contra mim o que quiseres, faz o teu melhor, meu grande canalha, meu estupor, minha besta quadrada, meu gigantesco paneleiro”. Ficou naquela posição, à espera, mas do céu nada veio a não ser uma gota desgarrada de chuva que lhe aterrou em cheio no nariz. Então, Alberto rebentou em gargalhadas. Estava exausto. Ia voltar para casa. Não se atrevia a ter esperança, mas ia voltar para casa.
Regressou ao carro, abriu a porta, entrou, ligou o motor. Voltou a percorrer, agora em caminho inverso, as ruas próximas do rio. Passou por um semáforo intermitente, e outro, e um terceiro, passou por quatro cruzamentos e depois por um quinto e entrou numa rotunda. Foi nesse momento que trinta quilos de moedas se materializaram dentro do carro, sobressaltando-o e fazendo-o dar uma guinada brusca ao volante, e depois rolando para o chão do carro, depositando-se aí, em camadas, por todo o lado, em montículos aninhados sob os pedais do travão e da embraiagem, tornando-os inúteis, e depois em outro montículo por cima do acelerador, fazendo-o descer, cada vez mais, cada vez mais, e Alberto partiu pela cidade fora em correria desarvorada, berrando como louco, fazendo possíveis e impossíveis para controlar o automóvel, evitando in extremis chocar com passeios, postes e os outros carros que começavam a aparecer na rua, e também com os estacionados, uma, duas, três, quatro vezes, até que à quinta, numa curva mais apertada, o pneu traseiro do lado direito mergulhou numa poça de água e perdeu aderência, e Alberto perdeu o controle do veículo, entrou em peão, galgou de seguida um passeio e foi-se esmagar contra o muro de uma vivenda, um muro sólido feito de pedra e argamassa e reforçado com aço, que mesmo assim ruiu sobre o automóvel, soterrando os restos ensanguentados e já sem vida de Alberto e os restos retorcidos do automóvel, que morria mais devagar mas de forma igualmente inexorável, sangrando óleo, gasolina e moedas de euro.

4096 x 1.
Houve quase um minuto de silêncio antes que uma estranha explosão ecoasse pela cidade adormecida e uma nuvem de moedas de euro subisse pelos ares, disparadas em todas as direções como se cada uma delas fosse propelida por um minúsculo foguete. Depois caíram, espalhando-se um pouco por todo o lado, uma chuva de moedas austríacas, ostentando todas elas a efígie de Mozart. E em todas elas, o sorriso enigmático do génio de Salzburgo estava subtilmente deformado, abrindo-se num esgar que se tornara trocista e perturbador.
A seu tempo, todas pararam de rolar, de saltitar, de carambolar em paredes, telhados, carros e troncos de árvore. Todas encontraram um nicho, uma cova, uma área plana que as acolhesse. E todas se prepararam para esperar.
Para esperar por que alguém as encontrasse.

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