terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O Canto do Cisne


por Jorge Candeias



No momento em que pela primeira vez o sinal lhe atingiu os recetores embutidos no bico, o cisne nadava placidamente no pequeno charco de água acastanhada que constituía boa parte do seu mundo desde que, tanto tempo antes, para ele abrira os olhos. Parou imediatamente de nadar, permitindo que a leve inércia do movimento o levasse pela água, rodeado de ondinhas, fazendo-se travar apenas pelo atrito de patas abertas, imóveis e viradas para o fundo. Inclinou a cabeça, como que surpreendido, mas depressa pareceu perder o interesse. Não seria o primeiro falso alarme a causar-lhe um sobressalto de antecipação, não seria a primeira vez que captaria um algo qualquer que não voltava a repetir-se. Por isso, limitou-se a alisar rapidamente com o bico as penas do pescoço, depois as do peito até quase à linha de água e, antes de recomeçar a propulsionar-se com as patas, ainda gastou uns segundos a aconchegar melhor as asas dobradas sobre o dorso.

O Vil Metal


por Jorge Candeias


1.
Quando Alberto reparou pela primeira vez na moeda estava encostado ao balcão de um café. O plasma, na parede, berrava uma notícia qualquer acerca da última gafe de um membro do governo, e ele brincava com a moeda enquanto esperava que a funcionária ucraniana, ou moldava, ou lá de onde trouxera aqueles olhos verdes que mais pareciam dois poços de limos e águas translúcidas, acabasse de bater o distribuidor com violência no balde dos desperdícios, de o encher com café acabado de moer, de encaixar a peça na máquina com um movimento pleno de uma destreza trazida por anos de prática e de premir o botão. Enquanto a bica começava a jorrar para dentro da pequena chávena, e para outra que fora encostada a ela com um tinido cerâmico, em dois fiozinhos fumegantes de líquido creme, Alberto fez rodopiar a moeda, pondo-se depois a observá-la, absorto nos seus movimentos vagamente ordenados, vagamente equilibrados, fascinado, como ficava sempre que fazia aquilo, com o modo como uma rodela de metal sólido e opaco se transformava assim numa esfera translúcida, que parecia ao mesmo tempo estar ali e não estar. Quando a empregada desligou a máquina e depositou as chávenas em dois pires a que de antemão agregara as respetivas colherinhas e pacotes de açúcar, Alberto fez parar a moeda pondo-lhe a mão em cima e retirando-a de seguida. A moeda ali ficou sobre o balcão, de súbito imóvel, como que vazia de vida, na expetativa de ser recolhida e trocada pelo troco, mas a empregada limitou-se a depositar a bica ao lado dela e seguiu para outro ponto do café, a fim de entregar a outra chávena a outro freguês qualquer.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Uma História Geométrica em Duas Partes

por Saul Matos Martins




N. A. - Esta história dá sequência a Uma Notícia Geométrica, de João Ventura

Primeiro, a surra. Depois, uma operação em delírio que o deixou mutilado. Depois, a perda do emprego
lamento imenso meu caro mas como compreenderá a firma não pode manter nos seus quadros alguém como o senhor
a que dera anos de vida. Logo a seguir, a mulher — linda quadrada quase perfeita, sempre adornada com levíssimos arrebiques nos vértices — que saiu porta fora levando consigo os pequenos, todos os pequenos, até o triste retangulozinho que era o mais novo e de quem ela nunca gostara precisamente por ser retângulo,
não posso Alfredo não posso mesmo desculpa vou para casa da minha mãe é a vergonha de estares transformado nisso com que cara encaro as amigas, não posso

quinta-feira, 4 de julho de 2013

A Ideia Peregrina

por Jorge Candeias





Como sou um tipo ocupado, e um grande infiel, nunca na vida iria de peregrino a Fátima. Mas a verdade é que não custa nada cobrir todas as possibilidades. Que isto nunca se sabe. De modo que tive uma ideia peregrina, vesti-a de batina, arranjei-lhe farnel, dei-lhe uns cobres e pu-la a caminho.
Não chegou lá. Conheceu uma brasileira vuluptuosa ali para os lados da Ota e acabou, bêbada e sem cheta mas divertidíssima, numa pensão de Rio Maior.
Nada a fazer. Eu sou assim. Até as minhas ideias peregrinas são umas pecadoras do catano.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Hambrelín ou A Tabuada das Ratazanas

por José Eduardo Lopes



NE: Este conto foi inspirado pelos contos da série das Ratazanas e por uma célebre lenda alemã.

Depois de séculos a transmitir às crias pequenas todos os ardis e táticas de sobrevivência da espécie, as ratazanas pensaram que já estava na hora de progredirem, de ampliarem os seus conhecimentos e aquilo que conservariam para transmitir aos descendentes. Começaram por aprender a ler, não os textos em palavra impressa, desenhada, mas textos em braile, que convinham mais à hipersensibilidade dos seus focinhos táteis. Logo que isso se tornou comum entre as ratazanas, estas ambicionaram aprender a contar e, mais do que isso, a multiplicar os números.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

A Metamorfose das Ratazanas

por Vanessa Glória Guedes




NA: Este conto foi inspirado pelos contos A Crise das Ratazanas, de Miguel Hernâni Guimarães, e A Fome das Ratazanas, de Jorge Candeias.

O ministro abriu a boca e dela saíram ratazanas. A sala susteve a respiração. Todos menos a Dona Alice, que era pitosga e despassarada e, ao ver aquelas bolinhas de pelo preto soltou um guincho de deleite e correu para elas gritando:
— Ai que lindos! Ai que queridos, os gatuxos! Mas quem foi que os deixou aqui?!
E recolheu as ratazanas, uma a uma, aconchegando-as ao peito e fazendo-lhes festinhas. Depois, levou-as dali.
E foi assim que, uma vez mais, um ministro foi salvo pela miopia e distração do povo.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

A Truta

por José Eduardo Lopes






Estamos no pequeno jardim da casa entretidos com a minúscula horta quando somos saudados por um vizinho com as fuças encaixadas nas ripas da vedação de madeira. Como estão? Dia bonito de sol, não é? Temos de aproveitar o bom tempo!, e outras banalidades de semelhante calibre. Eu e a minha patroa suspeitamos do motivo dessa simpatia. O vizinho — como todos os vizinhos, aliás — já foi visitar a truta violácea que mora ao fim da rua — todos menos nós — e aquela paragem diante da nossa casa não tem outro propósito senão o de nos fazer lembrar a nossa cruenta desumanidade. A truta violácea está doente, a truta violácea está com pena dela mesma e sofre de melancolia, a truta violácea até sonha acordada com regatos de águas cristalinas e lagos de montanha. Fica o dia todo deitada numa cadeira de espaldar no terraço para poder contemplar o rio escuro que corre junto à casa e lambe com as suas águas os pilares do cais envelhecido da arruinada fábrica de conservas. Está deitada sob o céu ao abrigo dum chapéu de sol, e lastima-se, e arfa com aflição como um peixe fora de água.